Conviver com a falta faz parte do ser humano

Lembro de uma carta, no comecinho da faculdade, que uma amiga escreveu ao ex namorado, dizendo que sua vida era como um enorme quebra cabeça, e ele era a peça que faltava para tudo ficar perfeito. Éramos bem novinhas, dezessete ou dezoito anos, e naquela época isso fez muito sentido pra mim_ a ponto de não esquecer o texto da carta até hoje, vinte anos depois.

Mas vinte anos também são suficientes pra gente aprender que a falta é e sempre será permanente. E perceber que comparar a vida com um imenso quebra cabeça pode ser, no mínimo, perda de energia. Energia pra ser feliz e se realizar plenamente com o que possui.

Conviver com a falta faz parte do ser humano; perceber-se sozinho, também. Crescer é aprender a conviver com os pedaços que permanecem sem encaixe, com o buraco que todos possuímos, com a escassez de peças que formam esse quebra cabeça incompleto que é a vida.

Quando entendemos que esse quebra cabeça é sim um quadro imperfeito_ pra qualquer um_ de peças desajustadas e faltantes, de cantos obtusos e bordas incompletas, que poucas vezes refletirá algo que faça sentido, enfim desistimos de desejar o impossível e aprendemos a encontrar as respostas no que é verdadeiro, real e palpável.

Neste fim de semana prolongado, passando uns dias na casa do meu sogro com a família, mergulhei no universo de “A menina quebrada”, livro de Eliane Brum. Nele, a jornalista se aproxima muito de nós, seus leitores, ao abordar a vida com sensibilidade e desassossego, o desassossego dos inquietos, ou daqueles que não se acomodam diante do óbvio, mas procuram desmontá-lo para enfim remontá-lo com certeza e verdade. Me fisgou no momento certo.

Entre tantas crônicas, duas me fizeram refletir sobre a falta_ a que nos habita e aquela que percebemos nos que amamos.

No texto “É possível obrigar um pai a ser pai?”, ela abre a discussão a partir do caso Luciane Nunes Oliveira Souza, indenizada na justiça pelo pai que, segundo a vítima, abandonou-a afetivamente. Lá pelas tantas, Eliane Brum nos desacomoda _ a todos nós, abandonados ou não _ ao nos confrontar com o apego que temos ao que nos falta. E no caso de Luciane, conclui: “Dificilmente Luciane conseguirá seguir adiante, paralisada como parece estar no mesmo lugar simbólico. (…) Tornar-se adulto, porém, é descobrir que o baralho nunca estará completo, que nem mesmo existe um baralho completo. Temos de jogar com as cartas que temos. E tentar recuperar cartas que jamais existiram, como se elas estivessem apenas perdidas, não nos ajuda a viver melhor. Apenas nos congela num lugar infantil”.

Outro texto, “A dor dos filhos”, fala da dificuldade que temos em lidar com os abismos de nossos filhos, abismos que nos remetem aos nossos próprios precipícios e falta de sentido. É ela quem nos fala: ” Não protegemos nossos filhos desse vazio, não há como protegê-los daquilo que é uma ausência que nos completa. Penso que este é o momento crucial da maternidade e da paternidade. Cada um de nós, que se sabe faltante, diante da falta que grita no filho”.
E conclui lindamente: “É preciso aguentar. Saber aguentar e escutar a dor de um filho, sem tentar calar com coisas o que não pode ser calado com coisa alguma, é um profundo ato de amor”.

Imaginar a própria vida como um quebra cabeça em que as peças faltantes limitam ou impedem o significado de todas as outras é submeter a existência àquilo que está fora dela; é reduzir a felicidade ao complemento de outros encaixes, quase nunca viáveis ou possíveis. Viver esperando que algo ou alguém venha nos completar e milagrosamente sanar os vazios que nos preenchem é autorizar que a falta seja aquilo que nos define mais. Estacionar diante de um quebra cabeça com fragmentos ausentes e insistir que precisa do quadro pronto pra ser feliz é desconstruir a possibilidade de seguir adiante. De vez em quando um “Deixa pra lá” faz milagres e nos liberta a prosseguir tentando um arranjo novo, nem sempre perfeito, mas invariavelmente possível.

Retornando da viagem, entramos em casa e, cheios de malas, queijos e ovos trazidos do interior, tropeçamos e desviamos das peças de lego de meu menino que ficaram por guardar e foram esquecidas espalhadas pelo chão da sala de estar. Terminadas as arrumações, sentamos para recolher as pecinhas e entre separar e brincar, tentamos uma ou outra combinação para criar um novo carrinho, casa, ou avião. E, enquanto ainda conseguimos prosseguir sem seguir o manual _ que exige as peças certas _ inventamos mundos e histórias com as peças que unidas se transformam e se reinventam.

Se_ ao invés do quebra cabeça_ desejarmos prosseguir como peças de lego, uma infinidade de possibilidades se descortina. Pois mesmo que faltem alguns pedaços, é possível continuar tentando e encontrando novas combinações, roteiros e direções. Um carro pode se transformar num prédio, navio ou caminhão. E é essa capacidade de se construir e desconstruir, de se desmanchar e se recriar de uma forma completamente diferente que faz do Lego_ e de nossas vidas_ o melhor brinquedo que existe.

Imagem de capa: Masson/shutterstock







Escritora mineira de hábitos simples, é colecionadora de diários, álbuns de fotografia e cartas escritas à mão. Tem memória seletiva, adora dedicatórias em livros, curte marchinhas de carnaval antigas e lamenta não ter tido chance de ir a um show de Renato Russo. Casada há dezessete anos e mãe de um menino que está crescendo rápido demais, Fabíola gosta de café sem açúcar, doce de leite com queijo e livros com frases que merecem ser sublinhadas. “Anos incríveis” está entre suas séries preferidas, e acredita que mais vale uma toalha de mesa repleta de manchas após uma noite feliz do que guardanapos imaculadamente alvejados guardados no fundo de uma gaveta.