Celebração da amizade, por Eduardo Galeano

Juan Gelman me contou que uma senhora brigou a guarda-chuvadas, numa avenida de Paris, contra uma brigada inteira de funcionários municipais. Os funcionários estavam caçando pombos quando ela emergiu de um incrível Ford bigode, um carro de museu, daqueles que funcionavam a manivela; e brandindo seu guarda-chuva, lançou-se ao ataque.

Agitando os braços abriu caminho, e seu guarda-chuva justiceiro arrebentou as redes onde os pombos tinham sido aprisionados. Então, enquanto os pombos fugiam em alvoroço branco, a senhora avançou a guarda-chuvadas contra os funcionários.
Os funcionários só atinaram em se proteger, como puderam, com os braços, e balbuciavam protestos que ela não ouvia: mais respeito, minha senhora, faça-me o favor, estamos trabalhando, são ordens superiores, senhora, por que não vai bater no prefeito?, senhora, que bicho picou a senhora?, esta mulher endoidou…
Quando a indignada senhora cansou o braço, e apoiou-se numa parede para tomar fôlego, os funcionários exigiram uma explicação.

Depois de um longo silencio, ela disse:

— Meu filho morreu.
Os funcionários disseram que lamentavam muito, mas que eles não tinham culpa. Também disseram que naquela manhã tinham muito o que fazer, a senhora compreende…
— Meu filho morreu — repetiu ela.
E os funcionários: sim, claro, mas que eles estavam ganhando a vida, que existem milhões de pombos soltos por Paris, que os pombos são a ruína desta cidade…
— Cretinos — fulminou a senhora.
E longe dos funcionários, longe de tudo, disse:
— Meu filho morreu e se transformou em pombo.
Os funcionários calaram e ficaram pensando um tempão. Finalmente, apontando os pombos que andavam pelos céus e telhados e calcadas, propuseram:
— Senhora: por que não leva seu filho embora e deixa a gente trabalhar?
Ela ajeitou o chapéu preto:

— Ah! Não! De jeito nenhum!
Olhou através dos funcionários, como se fossem de vidro, e disse muito serena:
— Eu não sei qual dos pombos é meu filho. E se soubesse, também não ia levá-lo embora. Que direito tenho eu de separá-lo de seus amigos?

Eduardo Galeano
Em, O livro dos Abraços, página 239. 
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Nota da CONTIoutra: esse conto me lembrou de um filme francês de beleza ímpar que começa do encontro de de duas belas almas em um banco de praça ao lado de pombos: Minhas Tardes com Margueritte, com Gérard Depardieu e Gisèle Casadesus.

Sinopse:

Imagine o encontro de duas forças. De um lado, mais de 100 quilos de pura ignorância  e do outro menos de 50, carregados de ternura. Entre eles, uma diferença de décadas de idade e em comum, o encanto pelos livros. Esta é a história de um cinquentão pobre com as palavras e uma idosa inversamente rica com elas.

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