Catarina, o amor não enxerga gênero

Fui buscar Catarina na delegacia de novo. Pela segunda vez, neste mês. Ela não consegue ir a uma festa e não se meter em confusão. E eu já estou cansada de tirá-la dessas burradas. Catarina é minha melhor amiga, desde que eu aprendi a reconhecer o que é uma amizade. A diferença é que, naquela época, a Catarina se chamava Felipe. Ninguém entendia muito bem o que se passava na cabeça dela, muito menos eu. Eu falava que Felipe era meu namoradinho, mas ele não gostava de mim. As tias da escola falavam que os meninos eram assim mesmo, que se afastavam das meninas e gostavam de implicar com elas, quando estavam gostando. A diferença é que a Catarina nunca me esnobou como quem sente uma atração e não sabe como reagir. Enquanto era Felipe, sempre foi muito próximo de mim, mas não demonstrava nenhuma atração. Quando eu era menor, eu sabia exatamente o efeito que o sexo oposto causava em mim. Queria ficar perto, mas ao mesmo tempo longe. Eu era só uma amiga e ele sempre me dava língua quando eu falava que ele era meu namorado.

Ficamos melhores amigos e o Felipe tinha mania de pegar minhas coisas. Meus colares, meus sapatos e meus lápis de pompom. Eu achava graça em tudo isso, mas o resto da sala caía em cima com aquele bullying moral que todo mundo já sabe de cor. Eu não sei onde a gente aprende a julgar os outros desde tão novos. Será que são nossos pais, a mídia, os desenhos? De onde vem essa irracionalidade cultural? Alguma coisa acontecia na vida do Felipe, mas eu não conseguia perceber. Ele brincava de boneca comigo, não tinha amigos meninos e sempre dava um jeito de colocar saia.  Por sorte, minha mãe nunca me pediu pra eu me afastar do Felipe, mas tentou me explicar ,de alguma forma, que ele era diferente, que ele tinha alma de menina, mas eu achava que era só uma metáfora bem feita, por ele entender tanto esse universo feminino, que era o meu. Felipe saiu da escola por causa das piadas maldosas e só voltamos a nos ver na faculdade. Mas não era mais o Felipe. Ele tinha se transformado numa mulher maravilhosa, chamada Catarina.

Nossa aproximação foi como de dois amantes que são separados pela guerra e não querem se desgrudar nunca mais. No caso, não éramos amantes, mas confidentes inconsoláveis. Ninguém me entendia como a Catarina e ela dizia que ninguém a tratava com tanta naturalidade como eu.  Eu tinha minhas amigas da época, mas, depois que Catarina reapareceu, minha vida realmente voltou para os trilhos. Eu até sentia uma pontinha de inveja, porque ela era bem mais bonita do que eu. Eu nunca soube entender muito bem esse sentimento. Não sei até que ponto era uma admiração absurda.

Percebi que ela tinha uma visão diferente do mundo, fora daquela fla x flu ou preto no branco. Estudou tanto sobre gênero, que passou a dar palestras em algumas universidades, tinha artigos publicados em revistas. Mas ela gostava de ficar no anonimato. Odiava esse fuzuê todo que as pessoas faziam em relação a ela. O assunto precisava ser discutido por inúmeros motivos, mas não tratado como uma anomalia ou algo extraordinário. Catarina teve sorte. Seus pais eram separados e ela viveu a vida toda com a mãe que, depois de sair de um relacionamento abusivo com o pai, abriu-se para a vida e se livrou de todos os preconceitos dos outros e dela mesma. Quando percebeu que seu filho, na verdade, era filha, tratou logo de entender tudo sobre o assunto. Talvez essa força toda de Catarina venha do apoio da mãe.

Mas essa confiança toda tinha efeito rebote quando Catarina se apaixonava. E ela se apaixonava muito. Em todos os lugares a que a gente ia, todos os caras davam em cima dela. E, quando descobriam que ela é transgênero, eu tinha que dar um jeito de tirá-la do lugar antes que nós duas saíssemos mortas. É claro que os boatos se espalhavam e nós éramos namoradas, ETs, eu era transgênero, travesti, a porra toda, já que a maioria das pessoas não sabe diferenciar muito bem uma coisa da outra. Eu mesma não entendo muita sobre essas diferenciações e nomenclaturas, mas a Catarina sempre diz que é importante saber. Para mim, todo mundo é gente. As nomenclaturas são só uma forma de a gente querer enquadrar os sentimentos que não se permite sentir. Uma forma de nos sentirmos únicos e, mesmo assim, parte de um grupo. Somos todos a mesma bosta moldada pela nossa cultura competitiva e tediosa.

Catarina sempre foi mestre em se meter em confusão. Pegava os caras e, quando eles descobriam, era porradaria na certa. Sendo que a Catarina, por mais que nenhum cara acreditasse, é uma mulher. E a Lei Maria da Penha também se aplica a ela. Mas eles não querem nem saber. Metem a porrada mesmo. Ela tem uma cicatriz no rosto por causa de uma dessas confusões. Eu não estava nesse dia, mas fui levá-la para o hospital e, depois, à delegacia. Lugar que a gente já conhecia bem. Falava para ela avisar antes, que tinham caras bacanas que iam gostar dela pelo que ela era, mas sempre me respondia que essa era ela e que ela não precisava ficar contando do passado para alguém gostar de quem ela é hoje. Calava-me, mas não conseguia entender.

Aos poucos, fui nutrindo um sentimento de raiva. Por ela e por todo mundo que não entende ou não quer entender. Não faz o mínimo esforço e nunca se perguntou por que se consideram homem ou mulher. O que o faz se sentir homem? O que a faz se sentir mulher? Quando você decidiu isso? Você realmente decidiu ou parou de negar o que realmente sente? Pois bem. Você não decide ser o que é. Você é o que é. E falam que temos que ser nós mesmos, mas qual é o custo que se paga por ser quem realmente somos?

Afastei-me dela por um tempo, para entender essa confusão toda que se passava em mim. Fui injusta e infantil por não ter percebido que essa raiva tinha outro sentimento. Esse sentimento de admiração pela força e coragem que a Catarina sempre teve e eu não tive. Eu era fraca demais para entender que esse preconceito vinha de mim, da minha completa incapacidade de me enxergar. Catarina é e sempre vai ser o amor da minha vida. O amor que eu sentia pelo Felipe, quando eu falava que a gente era namoradinho na escola, não passou. Eu sempre fui apaixonada pela Catarina, mas sabia que esse sentimento não poderia ser mútuo. A Catariana gostava de meninos, assim como eu sempre gostei. Considerava -me hétero, porque nunca sentira atração por mulher alguma, mas a Catarina era além de homem ou mulher. Catarina era uma pessoa incrível, que me fazia questionar tudo, menos eu mesma. Sempre tive medo de olhar para ela desse jeito, porque eu mesma não aceitava. Claro que um pouco pelo medo da rejeição dela, mas, principalmente, da minha rejeição, de como eu me olharia sabendo que fui, a vida toda, perdidamente apaixonada por uma mulher. Uma transgênero. Eu, que me achava super cabeça aberta e não entendia a rejeição dos outros.

Catarina sempre soube disso, mas não queria insistir. Ela não sentia o mesmo por mim e sabia que eu nunca aceitaria, se ela me falasse. E eu fiquei tão confusa e não entendi nada, porque até nisso a gente se limita. Ou você é gay ou não é. Ou você se considera mulher ou não. Mas existem tantas, mas tantas formas de amar e ser você, sem precisar se enquadrar em nenhum desses estereótipos. Ser hétero também é um estereótipo. Você sabe que é, do fundo do seu coração, então não se permite enxergar além. Não existe nada disso. Dá para ser mulher a vida inteira e decidir que, a partir de hoje, quer ser homem porque você se sente homem, e tudo bem. Dá para ser gay a vida inteira, mas se apaixonar por uma mulher porque somos pessoas e atração e sentimento não enxergam gênero. Nós somos o que somos hoje e não tem regra. De onde tiraram isso de que você tem que se definir e pronto, acabou? O que é mais bonito no ser humano é que ele muda constantemente e nossas vontades se misturam. E todo mundo é assim, mas nossa cultura não permite sair da linha nunca. E meu amor pela Catarina foi construído por tudo que ela lutou e luta até hoje. Porque ela já tinha me falado tudo isso, porque ela já experimentou sair de todas as linhas, de todas as formas, da sua zona de conforto. E, como a gente vai enxergar tão além, se ainda estamos discutindo machismo ou casamento gay? Ela cresceu assim, sabendo disso. E eu cresci ao lado dela e não me permiti.

Hoje, eu fui buscar a Catarina de novo na delegacia e vou buscar mais mil vezes, se for preciso. A gente nunca vai viver esse amor da forma como eu queria, porque ela tem todo o direito de não se apaixonar por mim e eu não posso culpá-la por isso. Por mais que eu seja a pessoa que mais a apoie em tudo, que esteja com ela para tudo. Vou viver esse amor como eu sempre vivi, ao lado dela, sem me martirizar. Posso até me apaixonar por outra pessoa, mas a Catarina sempre vai ser a última pessoa em que penso quando vou dormir.







Atriz, roteirista, formada em comunicação social e autora do Blog De Repente dá Certo. Pira em artes e tecnologia e acredita que as histórias são as coisas mais valiosas que temos.