As últimas horas do homem em situação de rua que faleceu na madrugada mais fria do ano em SP

O morador de rua Isaías de Faria, de 66 anos, chegou com fome e com frio ao centro de convivência São Martinho de Lima, na zona leste de São Paulo, na manhã desta quarta-feira (18/05).

Por volta das 8h, o idoso passou por uma triagem e pegou uma senha para tomar um café da manhã distribuído diariamente no local. No entanto, ele teve uma convulsão, caiu e faleceu antes que pudesse fazer a refeição.

Três horas depois, o corpo de Isaías ainda estava no local, isolado por algumas fitas e coberto por um lençol branco, ao lado de um chapéu e da mochila da vítima.

O idoso era velado por dezenas de pessoas em situação de rua que esperavam ser chamados para o almoço que também é oferecido gratuitamente no local.

Pessoas que presenciaram o falecimento de Isaías relataram que ele só estava vestido com uma blusa fina e tinha sinais de hipotermia, como dificuldades para se movimentar ou falar.

Segundo a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, “o caso foi registrado como morte suspeita pelo 8º Distrito Policial. Foi solicitado exame necroscópico da vítima para esclarecer todas as circunstâncias relacionadas ao fato”.

Na madrugada desta quarta (18), a cidade de São Paulo registrou 6,6ºC na madrugada desta quarta, a menor temperatura para o mês de maio dos últimos 32 anos, como informou o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).

Em conversa com a BBC Brasil, o morador de rua Leonardo Oliveira disse que encontrava Isaías diariamente durante o almoço. Ele diz ter visto o momento em que o companheiro faleceu.

“Quando eu cheguei, ele estava um pouco atrás de mim. Ele pegou a fichinha (para tomar café), foi ao banheiro, depois voltou, ficou um pouco perto da porta e caiu no chão. Não sentiu dor. Nem se mexeu. Do jeito que caiu, ele ficou. Depois, colocaram ele de lado, tentaram socorrer, mas não adiantou”, disse ele.

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Leonardo Oliveira disse que encontrava a vítima diariamente no horário do almoço
Foto: Fernado Otto

Oliveira disse ter passado a última noite na rodoviária do Tietê, para tentar se proteger do frio. Questionado, ele disse que não tem medo de falecer, mas sente a perda do morador de rua.

“Sinto tristeza. Ele é um irmão. Todo mundo é irmão. Alguns mais diferentes dos outros, mas todos irmãos”, afirmou.

De acordo com o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua em São Paulo, Isaías dormiu na calçada antes de ir até o centro de convivência.

“Pelo que sabemos da história dele, ele tinha um quartinho para dormir. O que acontece muitas vezes com as pessoas é que elas têm que escolher entre dormir e comer. E muitas vezes ele vinha comer na comunidade. E, para não ficar sozinho, acaba ficando na rua junto com os outros e acaba correndo esse risco”, afirmou.

O sacerdote disse que o morador de rua pode ter sofrido um choque térmico assim que entrou no local para tomar café da manhã.

“Ele só fez o registro, caminhou dez passos e caiu. Os sinais vitais dele pararam. Veio a equipe médica para ver os sinais vitais e tentar reaquecê-lo. Quando o resgate chegou, ele já estava morto”, relatou Júlio Lancellotti.

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O padre Júlio Lancellotti afirmou que as pessoas que dormem sozinhas são as que mais precisam de ajuda nas ruas
Foto: Fernando Otto

Momentos depois, outro homem apresentou estado de hipotermia no mesmo centro de convivência, mas foi socorrido a tempo.

No Instagram do padre Júlio foi postado um vídeo que mostra diversas pessoas tentando reanimar a vítima, que estava quase imóvel.

Segundo o padre, o homem reagiu e ficou bem logo depois de ser enrolado numa manta térmica e receber bebidas quentes.

“Foi muito complicado reaquecê-lo”, diz o padre.

Padre Júlio ainda explicou à BBC que muitas pessoas que vivem nas ruas se negam a pernoitar em abrigos oferecidos pela prefeitura.

“Uma das questões é a burocracia, a institucionalização e a tutela do poder público. (Ao aceitar o abrigo), o morador de rua perde completamente a liberdade e passa a ser uma pessoa tutelada. Mas nem todos aceitam isso. Também tem questões de relacionamento”, disse o padre.

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Alguns moradores de rua têm poucas peças de rua para se protegerem do frio em São Paulo
Foto: Fernando Otto

O sacerdote citou como comparação a dificuldade que muitas pessoas enfrentaram para permanecer dentro de suas próprias casas ao longo do período de restrições estabelecidas para conter a pandemia da covid-19.

“Com todo o conforto de suas casas, as pessoas não quiseram ficar fechadas e nós queremos que os moradores vivam num lockdown permanente”, afirmou.

Padre Júlio Lancellotti ainda afirmou que as pessoas que dormem sozinhas nas ruas são as que mais precisam ser ajudadas.

“Os grupos se protegem entre si. O que ocorre é que às vezes, a pessoa ingere álcool e ela adormece. Mas o álcool é muito volátil, ele congela e a pessoa congela. Qualquer um de nós pode ter uma garrafa com uma bebida quente, um par de luvas ou uma touca para socorrer quando encontrar uma pessoa sozinha. Existe a baixa temperatura e existe a frieza humana”, disse.

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Redação Conti Outra, com informações de BBC.







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