Almas hospedeiras se sustentam da essência alheia

Ela era uma dessas árvores antigas, de galhos retorcidos, firmeza nas raízes, absorvendo essências subterrâneas desconhecidas e trazendo-as para o mundo em forma de seivas, folhas, força das cascas do tronco e na delicadeza dos galhinhos verdes recém-nascidos.

Era uma árvore autossustentada na poesia de si mesma e nas que pousam em seus galhos que sabem admirar e receber. Ela era circuito de amor, geradora de energia, mãe – dava de comer e beber a tantas outras vidas. Insetos, pássaros, orquídeas. Um pouquinho pra cada.

Mas tinha também uma outra existência entrelaçando-se com a sua.

Era uma espécie de trepadeira sinuosa que lhe abraçava e circulava do chão ao céu, uma planta hospedeira que foi crescendo e existindo nessa relação de dependência. Uma planta que não buscava por si mesma, sua raiz de essência. Ela sugava a substância que ia fluindo nas veias da grande árvore. A grande árvore, mãe, acolhedora, amparava-a e devagar e sempre ia doando mais do que podia. Vivia, mas sem energia para flores, permanecia grande, ereta, mas sem conhecer a plenitude de suas primaveras.

Até que um dia, dentro dessa apatia do mundo, um olhar de fora, observador, de um passante notou a beleza reprimida, a sabedoria bloqueada, a possibilidade de crescimento suprimida. E, num gesto empático, cortou a conexão da trepadeira e deu um respiro desconhecido à grande mãe. As marcas dessa ligação antiga ficaram ainda na derme ressentida da grande árvore.

No começo, ela sentida uma espécie de falta, uma espécie de desconhecimento de si mesma. Quem ela seriam, assim solta na vida? Quem poderia ser, até onde poderia crescer? Qual era o limite do céu?

Deixou-se apenas sentir…

E mal bem despontaram os primeiros raios de primavera, a grande mãe, quase que sem querer, cobriu-se de florzinhas amarelas brilhantes.

O floreio amarelo ouro nasceu por todos os cantos, cobriu as dores passadas, curou os medos inventados, trouxe o alívio da liberdade. Flores que choviam pelos ares, se esparramavam pelo chão, inundavam os olhares, despertavam atenção.

O grande e velho ipê amarelo, enfim, pôde sê-lo.







Clara Baccarin escreve poemas, prosas, letras de música, pensamentos e listas de supermercado. Apaixonada por arte, viagens e natureza, já morou em 3 países, hoje mora num pedaço de mato. Já foi professora, baby-sitter, garçonete, secretária, empresária... Hoje não desgruda mais das letras que são sua sina desde quando se conhece por gente. Formada em Letras, com mestrado em Estudos Literários, tem três livros publicados: o romance ‘Castelos Tropicais’, a coletânea de poemas ‘Instruções para Lavar a Alma’, e o livro de crônicas ‘Vibração e Descompasso’. Além disso, 13 de seus poemas foram musicados e estão no CD – ‘Lavar a Alma’.