A sociopatia no filme “O Abutre”

Por Octavio Caruso

“O Abutre” (Nightcrawler), de 2014, o primeiro trabalho como diretor do roteirista Dan Gilroy é simplesmente brilhante. A melhor sequência, dentre várias que poderia destacar, representa a esperteza do roteiro em inserir o espectador na pungente crítica que direciona ao jornalismo baixo e imediatista que é realizado nos dias de hoje. Como eu sempre digo: a sociedade não cria os abutres, ela os alimenta. Na sequência do crime na mansão, Gilroy nos convida a seguir os passos do protagonista Lou Bloom, vivido impecavelmente por Jake Gyllenhaal, uma longa travessia por corpos ensanguentados, num crescendo de horror que, por incrível que pareça, não suscita reação alguma no rosto do jovem que manipula sua câmera como uma arma. A frieza dele, planejando cada passo, até mesmo modificando elementos na cena, objetivando captar o brutal cenário da forma mais cinematográfica, por conseguinte, mais atraente para a sua cúmplice na estação de televisão, vivida por Rene Russo, sua alma gêmea na total ausência de caráter e ética.

Um sociopata se define pelo comportamento antissocial, sem amarras morais, podendo apresentar tendências criminosas. Bloom é mostrado em seu cotidiano como alguém que rega sua plantinha, ou registrando suas participações na televisão, porém, fora isso, ele parece não ter amigos, namorada, em suma, ele carece de empatia e vive uma rotina sem nenhum apego com a sociedade. A sua atitude arrogante, que consiste em, invariavelmente, e de forma cínica, manter o foco da atenção em suas ações, uma imagem distorcida de autoavaliação, que transparece uma segurança fora do comum. A sua interação com os outros é limitada a frases rápidas, abordagem direta, como um titereiro habilidoso, resultando em relacionamentos intensos e instáveis, objetivando apenas sua ambição impulsiva de momento: crescer na indústria do telejornalismo, aproveitando a brecha dos profissionais sem escrúpulos e a fome de um público, os abutres, que consomem esse sensacionalismo barato. Quem se opuser a esse caminho, será simplesmente eliminado.

Ele sabe que quanto mais demorar sua exploração, melhores serão os números de audiência, o espectador chocado terá tempo de avisar o vizinho, os familiares, os colegas de trabalho. O momento mais inteligente ocorre quando ele adentra o quarto do bebê. Nós não sabemos absolutamente nada sobre aquela família, apenas visualizamos um quarto decorado de forma infantil, com um berço posicionado no centro. É quando o roteiro implacavelmente nos insere na crítica. O personagem se aproxima lentamente do berço, fazendo com que nós compartilhemos o mesmo frenesi daqueles que perdem vários minutos na frente da televisão acompanhando uma perseguição de carro ou um sequestro em tempo real. Nós, os abutres que somos alimentados por esse jornalismo cretino. Nós que não conseguimos desviar os olhos, numa mistura de sentimentos humanamente ambíguos, por um lado, desejando que o bandido seja preso logo, por outro, desejando que ele consiga driblar a polícia por mais tempo, para que aquela emoção da caçada nos tire de nosso cotidiano apático.

É exatamente o sentimento odioso que mantém programas sensacionalistas policiais no ar, com tanta audiência, invadindo as casas dos brasileiros até mesmo na hora do almoço. Voltando à cena, o diretor corta antes de revelar o interior do berço. A intenção é nos estimular a repulsa por algo que não vimos. O espectador comenta com sua companhia na sessão: “Nossa, ele filmou até o bebê morto, que monstro insensível”. Alguns minutos depois, como que com um sorriso sarcástico de quem provou sua tese com louvor, o filme revela que não havia bebê algum no berço, aquele quarto, provavelmente, estava sendo preparado para uma criança que ainda não nasceu. E, mais além, descobrimos que a mansão era de traficantes de drogas.

Todo o investimento emocional do espectador, tanto o real, quanto o do noticiário na obra, foi manipulado pela irresponsável estação de televisão, que, numa atitude coerente à podridão de todos os atos anteriores, decide se negar a evidenciar essa conclusão. O mais importante para um jornalismo imediatista é que o público, resumido a números numa conta bancária, se mantenha na frente da televisão, ou folheando as páginas do jornal, pelo maior tempo possível. Contar a eles que a pobre família vítima dos assassinos era, na realidade, um bando de criminosos, iria afastar o público. Quando o jornalismo perde o senso de moral, ele se torna uma busca desesperada por manchetes sensacionalistas, simplificando qualquer discurso a imagens de impacto, visando o choque, nunca a reflexão. Essa longa sequência é apenas um dos motivos que fazem com que o filme seja uma obra espetacular, pensada para adultos, com uma coragem que faz falta na indústria.

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OCTAVIO CARUSO

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Carioca, apaixonado pela Sétima Arte. Ator, autor do livro “Devo Tudo ao Cinema”, roteirista, já dirigiu uma peça, curtas e está na pré-produção de seu primeiro longa. Crítico de cinema, tendo escrito para alguns veículos, como o extinto “cinema.com”, “Omelete” e, atualmente, “criticos.com.br” e no portal do jornalista Sidney Rezende. Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, sendo, consequentemente, parte da Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica.

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