A dor de se sentir invisível

A invisibilidade consta como elemento de desejo na lista de superpoderes. Quem nunca desejou ter uma capa de invisibilidade igual à do Harry Potter, ou “ser uma mosquinha”, para passar despercebido e poder estar em algum lugar específico para poder ver e ouvir sem ser visto ou ouvido?

Esse desejo de não ser identificado está associado às situações das quais por alguma razão somos ou fomos excluídos por não pertencimento ou não aceitação daquele grupo ora reunido; essa exclusão desperta dentro de nós, além da curiosidade natural, uma vontade de possuir o poder de resistir à situação da margem, de não obedecer a placa de “proibido entrar”, de se rebelar contra a barreira do não pertencimento.

No entanto, há um outro tipo de invisibilidade que contraria toda possibilidade de alcançar algum poder: ser ou estar invisível aos olhos do outro, mesmo estando de corpo e alma presentes, ao vivo, a cores, em 3 D, com direito a cheiros e odores. Esse tipo de invisibilidade fere a gente num lugar fundo da alma, porque é uma mensagem direta do outro para nós, por meio da qual deixa explícito que, por opção ou falta de capacidade, não tem olhos para nos ver, olhar e, muito menos, enxergar.

E, verdade seja dita, cada um de nós já esteve dos dois lados dessa cena. Basta parar pra pensar um instantinho em quantas vezes, engolidos pelas nossas urgências negligenciamos os outros ao nosso redor. Quantas vezes até identificamos que aquela colega que senta na mesa ali adiante tem andado mais calada ou com os olhos vermelhos e, dizemos para nós mesmos que não é ético perscrutar os sentimentos alheios porque não queremos ser invasivos, quando na verdade o que nos impede de tentar furar a bolha – a nossa e a do outro – é um fervoroso instinto de autopreservação, uma mania adquirida de não prestar atenção em nada que não nos seja útil imediatamente, ou pior: o hábito de achar que a dor do outro não é da nossa conta.

O fato é que estamos cercados de seres invisíveis e que certamente somos invisíveis para muitos daqueles que compartilham conosco o nosso dia-a-dia, o nosso ambiente de trabalho, o nosso lugar de estudo, a nossa roda de amigos, a nossa casa e, até a nossa própria cama.

Sentir-se invisível é uma das dores mais cruéis a que um ser humano pode ser submetido, porque tira dele a possibilidade de ser real; é como se ele não existisse; ou pior, como se ele existir fosse tão inconveniente, que a melhor forma de lidar com ele é fingir que ele não existe.

Ainda pior que ser invisível, ou sentir-se invisível, é tornar-se visível ao outro apenas em situações em que o simples fato de você existir torna-se um transtorno ao equilíbrio do entorno. É ver a mulher ou o homem que segue pelas ruas arrastando uma carroça, só na hora em que a sua existência atrapalha o tráfego. É notar aquela pessoa gorda sentada na lanchonete e pensar que ela não deveria estar ali comendo aquele sanduíche gigante e imediatamente julgá-la com a autoridade de um juiz: “Tá vendo! Por isso que é gorda!”. É perceber o quanto se é hipócrita quando se autoproclama livre de qualquer preconceito de gênero, até descobrir que a mãe ou o pai, depois de tantos anos descobriu que está apaixonado por alguém do mesmo sexo. É esconder sua postura machista atrás de frases como: “Mas será que ela não foi assediada porque se insinuou”?

Quando a invisibilidade é rompida por meio de uma visibilidade que marginaliza, fica escancarada a nossa falta de jeito para lidar com tudo o que não nos é familiar, confortável, ou parecido conosco. O diferente ainda nos assusta tanto porque ainda estamos enraizados em crenças de uma sociedade pasteurizada, onde é obrigação de todos submeter-se à linha de produção dos padrões para poder caber bem direitinho nas caixinhas que lhe são destinadas.

É urgente tomarmos ciência de que essa nossa cegueira voluntária e seletiva constitui o elemento base para que se instale no nosso mundo uma cultura tácita de exclusão, abandono e violência. Enquanto continuarmos a cruzar os braços diante da falta de equidade em todos os níveis da esfera humana, não só seremos coniventes com a manutenção dos invisíveis, como corremos o sério risco de, num futuro breve, sequer sermos capazes de sermos visíveis a nós mesmos.

Imagem de capa: Fotolia







"Ana Macarini é Psicopedagoga e Mestre em Disfunções de Leitura e Escrita. Acredita que todas as palavras têm vida e, exatamente por isso, possuem a capacidade mágica de serem ressignificadas a partir dos olhos de quem as lê!"