A banalização do machismo

Circulam pela internet vídeos produzidos por turistas brasileiros na Rússia. Os jovens – nem tão jovens assim, vá lá – aproximam-se de garotas russas, e em clima de festa convidam as moças a repetir frases pornográficas em português. Elas embarcam no clima de festa e de irmandade da Copa do Mundo, repetindo textos que muito provavelmente não pronunciariam se compreendessem o significado.

As imagens foram um soco no estômago das mulheres com um mínimo de consciência. Se o debate já tivesse mudado de nível, os marmanjos brincalhões apareceriam como fósseis vivos viralizando pela internet. Eles encarnariam uma imagem anacrônica, fora de moda, caricatural, vintage, mesmo, do homem brasileiro.

É “só que não” que fala?

Há dois meses, bem de frente à minha casa, no coração do plano piloto, por sua vez o coração de Brasília, que é também o coração do Brasil, uma moça foi estuprada a caminho do metrô. Ninguém encontrou o criminoso, e o assunto caiu no esquecimento.

Prossiga para entender o que o fato tem a ver com o mau gosto dos fanfarrões tupiniquins na Rússia.

Enquanto as feministas derramam sua bílis, muitos julgam que elas exageram, que lhes falta o que fazer. Era só uma brincadeira…Onde fica o espírito de Copa? E os rapazes, ah, estavam certamente bêbados…

Bêbados? In vino veritas, diz o provérbio . Em tradução livre, na embriaguez, deixamos transparecer a verdade. É certo que isso inclui o essencial de nossa natureza, nossos valores, costumes, sentimentos.

A situação me evoca Hannah Arendt. E sigo na mesma tônica de “Racismo, Linchamento e Meias-Verdades“, publicado aqui há algum tempo.

Nos anos 60, o nazista Adolf Eichmann foi abduzido em Buenos Aires, e ressurgiu em um tribunal de Jerusalém, onde deveria responder por atrocidades perpetradas contra os judeus.

A filósofa Hannah Arendt, ela mesma uma judia que conseguira fugir do Holocausto e se radicar nos Estados Unidos da América, ofereceu-se para fazer a cobertura do julgamento de Eichmann para a publicação norte-americana The New Yorker. Os textos de Hannah surpreenderam a todos, e foram compilados no clássico “Eichmann em Jerusalém.”

Quando Arendt afirmou que Eichmann não era um monstro, mas um medíocre burocrata, foi mal interpretada. Entenderam que ela, ao compreender o percurso psicológico do criminoso, dava margem ao perdão.

De fato, atribuir suas ações a uma ideologia criminosa sedimentada no tecido social poderia funcionar como atenuante no âmbito do processo penal. Isso é tudo que a justiça penal internacional não quer. Procura-se aí, justamente o caminho inverso, o da responsabilidade individual, a construção da ideia de que é possível violar o direito internacional, mesmo agindo em estrita observância à ordem jurídica de determinado Estado.

Mas Arendt não tinha o pensamento moldado pelo direito. Sua lógica era outra. “Compreender não é perdoar”, insistia. Ela estava interessada no fenômeno que havia conduzido à barbárie, e não no castigo propriamente dito.

A pensadora acabou se colocando na linha de fogo da comunidade a que pertencia, porque a raiva era – como costuma ser, aliás – o caminho da catarse. É muito difícil dar conta da complexidade dos fatos. É mais simples eleger um personagem como objeto de indignação. “Que nojo desses brasileiros”, eis o mantra que ecoa nas redes sociais.

Mas os protagonistas do vídeo possivelmente desconhecem o que a trolagem deles incorpora e propaga. Os indiferentes, tampouco.

A mulher ficou exposta, mas quem mandou dar conversa para estranhos? A culpa é da idiota da Chapeuzinho Vermelho, não do Lobo Mau. A moça de Brasília usava mini-saia? Ela gritou no momento do estupro? Juro que ouvi isso de pessoas esclarecidas.

O vídeo dos nossos compatriotas na Rússia incorporam o desrespeito ao gênero feminino como um todo, difundido e consolidado em nossa sociedade. Dizer isso não é minimizar atitudes. Eles devem, sim, desculpas a todas as mulheres do mundo.

Mas é preciso reconhecer que em seu primitivismo, sua falta absoluta de cultura, maturidade e educação, aqueles homens denunciam a misoginia impregnada em nossa cultura. Essa é a verdadeira tragédia.

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Abaixo, a publicação de Cristinano Santos, no Facebook, também debate o tema e mostra o vídeo.

 







Formada em Direito pela Universidade de Brasília, e mestre pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Advogada, é professora de Direito Internacional Público. É muito feliz na escolha profissional que fez, mas flerta desde sempre com as letras.