Por Nara Rúbia Ribeiro

Tenho a mania interiorana de ouvir conversa alheia. Certo dia, goiana que sou, sentei-me no mercado central de Goiânia para comer uma empadinha de frango, enquanto ouvia três senhores de avançada idade, avós, bons cidadãos, comentarem sobre a violência e dizer que o seu crescimento se dava pela frouxidão com que as penas são cumpridas no Brasil.

O problema é que eles só enxergam uma ponta do nó afrouxado. Mas as pontas são duas e vou mostrá-las.

Proponho que pensemos no seguinte experimento:

Caminhe por sua rua e catalogue todos os cães ferozes, indomados, aparentemente não domesticados. Escolha um reduto pequeno, uns 10 metros quadrados, e aprisione-os a todos. Dá para colocar uns 30 cães nesse espaço. Comida regrada, pouco ou nenhum contato com o ambiente externo. Uns ferirão a outros, mas não tome partido. Deixe que a lei do mais forte prevaleça ali no cativeiro. Os mais fracos e os mais velhos, os menos ferozes, serão mortos em meio aos demais. Não se ocupe disso. Não os adestre. Não lhes dê carinho e afeto. Não lhes dê qualquer sorte de retribuição considerável por bons comportamentos. Nada.

Deixe-os ali por 5, talvez 10 anos. Findo esse prazo, chame a sua filha, ou sua neta de 5 anos e diz a ela:

– Pronto, já ensinamos essas feras. Está aqui a chave do cativeiro. Você pode soltá-los agora, querida. Já estão aptos ao convívio social.

Você faria isso? Entregaria a chave para a sua filha? Penso que não.

Todavia, assim como no experimento acima, trancafiamos humanos de tendência infeliz, descumpridores da lei penal, de comportamento antissocial e caráter questionável, na mesma condição que teríamos trancafiado os cães, no citado experimento. E, pasmem, ainda há quem se queixe e não entenda a escalada da violência em nosso país e diga estar estarrecido pela insegurança de nossos filhos.

A insegurança aumenta porque a maldade é viscosa. Uma vez em contato com a violência, ficamos impregnados do ódio, da sede de vingança, do desejo de retribuir o mal com um mal equivalente ou maior. Nós nos permitimos o uso da violência para com os violentos como se essa fosse a panaceia de todos males e o resultado disso é a sentença que hoje pesa sobre nós: medo, dor, insegurança, tristeza. Somos assombrados pelo espectro da nossa não caridade para com os menos afeitos à bondade: o “bandido” estuprado, ferido, ofendido, extorquido por autoridades vai voltar para a rua dez vezes pior do que quando entrou para a prisão. Isso é fato.

A violência é crescente porque pulou as nossas cercas morais e se alojou no sofá das nossas almas. Por isso aqueles bons senhores diziam: “Estuprador tem que ser estuprado mesmo. E tinha que matar a quem rouba.”

Acaso quem estupra ou quem faz apologia ao estupro de um estuprador é menos estuprador que o primeiro criminoso? Acaso a sociedade que mata a quem pratica um crime grave ou hediondo é menos criminosa, é menos vil que aquele a quem a pena capital está a ser aplicada?

A frouxidão do nó da justiça penal no Brasil não se dá apenas quando a pena é parcialmente cumprida, quando o culpado é inocentado ou quando o apenado, de dentro do presídio, permanece a praticar crimes. Tem outro lado e ainda mais frouxo: quando não tratamos o apenado como humano, quando retiramos dele muito mais do que a lei prevê, privando-o não só da sua liberdade, mas também do seu senso de dignidade, da possibilidade de ocupar-se decoisas nobres, da sua integridade física, da sua integridade psíquica.

Manoel de Barros, poeta matogrossense, pensava renovar o homem de um modo muito peculiar: usando borboletas. Sábio Manoel! Só a beleza, a candura, a pureza e a liberdade é que renovam o homem. Que elas (as borboletas)  inspirem-nos na tolerância da grande metamorfose que necessita advir para que possamos experimentar a real evolução.

Assim como hoje nos envergonhamos dos nossos antepassados em razão da escravidão a que submetiam outros humanos valendo-se de parâmetros como a cor, a origem ou a classe social, as futuras gerações se envergonharão de nós pela forma com que tratamos primeiro a educação dos nossos jovens e, depois, da reeducação dos nossos infratores.

Os nossos filhos e netos saberão, quando tiverem nas mãos as chaves do “canil humano” a que submetemos os nossos apenados, que os verdadeiros culpados da violência são aqueles que estão atrás das grades. E diga-me aqui: Algum de nós hoje é livre? Não estamos todos atrás das grades?

Arte Pedro Ruiz
Nara Rúbia Ribeiro

Escritora, advogada e professora universitária.

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