Categories: COLABORADORES

Quem tem esperança levanta e busca. Quem não tem, senta e espera cair do céu

Reconheçamos, pois. Nós estamos perdidos! Não sabemos mais a que ponto chegamos, como viemos parar aqui ou para onde iremos agora. Sequer desconfiamos a quem devemos perguntar, muito menos que perguntas devemos fazer. “Onde estamos?”, “como chegamos?”, “por onde sair daqui?” nada valem. São questões simplórias demais e nós enfim nos afeiçoamos a complicar tudo, porque só as coisas muito complexas passaram a valer alguma coisa na lama onde atolamos.

Aqui, de tanto complicar e perpetuar questões primárias, não se questiona mais nada que mergulhe para além da profundidade das poças d´água. Desaprendemos o exercício bom de fazer perguntas e pensar sobre elas. Preferimos adotar respostas prontas para tudo, soluções por encomenda, conclusões fáceis importadas de juízos alheios.

Como motoristas desnorteados e inconfessos, perdemos os mapas, as bússolas, os sinalizadores e outros recursos que nos orientem. Ainda assim nos mostramos seguros. Impávidos! E continuamos perdidos. Somos como velhos condutores desvairados que, em vez de parar e perguntar enquanto podiam, preferiram seguir às cegas até o nada de uma estrada de terra sem sinal de vida ao redor. Até o combustível acabar, a noite cair, a escuridão se instalar e o desalento bater. Perdidos. Nós estamos perdidos.

E assim, de não saber o que fazer, não saber para onde ir ou por onde voltar, decidimos atacar uns aos outros. Como ratos loucos sobrevivendo num laboratório abandonado, presos em uma redoma de vidro, castigados por choques elétricos a cada quarto de hora, aprendemos que a única defesa possível é passar o sofrimento adiante. Jogar a batata ao próximo. E dane-se quem estiver perto. Que também padeça nossa dor, nossa angústia, nosso desespero.

Estamos entrincheirados, atirando uns contra os outros, “bandidos” versus “mocinhos” , “pobres” enfrentando “ricos”, “direita” contra “esquerda”, “conservadores” e “progressistas”, “estourados” e “pacientes”, “flexíveis” e “intolerantes, “generosos” e “mesquinhos”, “eles” contra “nós”. Todos engalfinhados num inútil, eterno e retrasado bate-boca. Dizer que somos “egoístas” simplesmente, egocêntricos apenas, é só mais uma mentira fácil. Não, nós não estamos interessados no próprio umbigo somente. Andamos pra lá de ocupados com a vida alheia, descendo a lenha, acusando, julgando, condenando no outro as falhas, faltas e excessos que quase sempre também são nossos.

É assim que nós estamos. Perdidos. Perdemos a hora, o caminho, a noção do ridículo, a vergonha na cara e o pudor de nos odiarmos sem assumir. A “sorte”, se é que ainda existe sorte por aqui, é que restam aqueles que sofrem de esperança. São os que caem, levantam e vão em frente, partem em busca. Essa gente faz milagre.

Agorinha ainda, num hospital público imundo e distante, alguém vai receber uma graça. Em algum corredor abafado por uma multidão de doentes desassistidos, bem ali, contrariando todas as possibilidades, uma mãe sozinha e triste vai dar à luz seu primeiro filho, e ele será saudável, belo, amado e feliz.

Virá à vida aqui fora pelo empenho de uma só enfermeira, sob o auxílio e a boa vontade de quem estiver perto. “Água! Alguém aí me traga água morna e uma toalha e uma bacia!”. Chegará exibindo no peito miúdo o segredo grandioso da vida, revelando com a boquinha aberta e os olhinhos perplexos sua vocação luminosa num riso de espanto e pureza, enquanto aspira voraz sua primeira dose de ar dessa terra.

E assim tudo resiste. No empenho de quem tem esperança e vai adiante. Apesar da modorra de quem senta, reclama e espera cair do céu.

Na graça das crianças que sobrevivem persiste o fato de que o melhor e o pior estão por vir e virão de nós e de mais ninguém. Gente próspera ou gente emperrada, não importa. É tudo gente. Imperfeita e inacabada que só. Gente que no fundo só quer da vida um lugar para onde ir e um outro para onde voltar. A gente sabe, sempre soube, mas esqueceu. É que esse barulho todo, essa corrida insana, essa briga de faca, tudo isso nos fez parar e esquecer o óbvio: do céu não vai cair. E quem só espera não alcança nada.

Imagem de capa: lassedesignen/shutterstock

André J. Gomes

Jornalista de formação, publicitário de ofício, professor por desafio e escritor por amor à causa.

Share
Published by
André J. Gomes
Tags: esperança

Recent Posts

“Pouco me lixando” diz mãe presa por desligar sonda do filho com paralisia cerebral

Uma mãe foi presa por maus-tratos contra o próprio filho de três anos, que sofre…

7 horas ago

Orangotango é visto usando planta medicinal para curar ferida em seu rosto

Pesquisadores flagraram um orangotango da ilha de Sumatra, na Indonésia, utilizando uma pasta à base…

16 horas ago

A primeira coisa que você vê nesta imagem pode revalar se você é uma pessoa mais reservada ou extrovertida

Qual é a primeira coisa que você vê primeiro ao olhar para esta imagem? A…

17 horas ago

Novidade na Netflix: Glen Close e Mila Kunis arrancam lágrimas e aplausos em filme arrebatador

É impossível não se emocionar com a história profundamente humana e as atuações fenomenais que…

3 dias ago

Viúvo de Walewska quer que pais da jogadora paguem aluguel para morar em apartamento deixado pela filha

"Ele mandou uma notificação sem autorização judicial informando que os pais dela ou pagarão a…

3 dias ago

Desaparecimento de Madeleine McCann completa 17 anos e pais fazem declaração: ‘Vivendo no limbo’

Dezessete anos se passaram desde que Madeleine McCann desapareceu do quarto de um resort na…

3 dias ago