Fabíola Simões

A solidão do abandono dói muito mais que a solidão de estar sozinho

Essa semana, retornando de viagem, assisti a um filme que me marcou profundamente. “Mary Shelley”, longa estrelado por Elle Fanning, conta a história da escritora britânica que dá título ao filme, autora do clássico Frankenstein. A cinebiografia, da cineasta saudita Haifaa Al-Mansour, retrata a trajetória de Mary Shelley até o momento em que ela publica sua obra prima: “Frankenstein ou O Prometeu Moderno”, atribuindo voz, corpo e alma à dor e ao abandono que ela mesma sentia.

Para criar Frankenstein, Mary precisou vivenciar a desesperada solidão que define a criatura. Ela precisou conhecer profundamente a dor do abandono, da rejeição, e toda solidão dilacerante que acompanha a perda e o desprezo. Num dos trechos do filme, o poeta Percy Shelley, seu marido, diz a ela: “Nunca lhe prometi uma vida sem sofrimento, mas subestimei a sua melancolia”. E ela lhe responde: “Se eu não tivesse aprendido a lutar através da angustia, não teria encontrado essa voz novamente”. Pois foi através de toda dor e sofrimento vividos por Mary que Frankenstein ganhou vida e veracidade. Foi através da angústia de Mary que nasceu essa história que retrata a necessidade humana por união.

A criatura do Doutor Frankenstein anseia pelo toque de seu criador. Porém, quando o médico recua em pavor, deixando a criatura envolta em sentimentos de abandono e isolamento, acaba autorizando que a dor do abandono se transforme numa tragédia.

A solidão de ter sido abandonado dói muito mais que a solidão de estar sozinho. Pois o abandono é como farpa na carne a consumir nossos dias e noites; e a solidão advinda da rejeição leva porções de nós mesmos que antes nem sentíamos falta. Quanto maior nosso amor por alguém, mais devastador se torna o desprezo desse alguém por nós.

Nunca imagine que a culpa de ter sido abandonado pertence a você. Talvez uma parte, talvez nenhuma, mas acima de tudo, compreenda que há muito mais chão entre ser o abandonado ou ser o que abandona do que você poderia supor. E por mais que seu orgulho esteja ferido agora, acredite que ser o abandonado não te torna uma pessoa inferior ao que abandona. Colocar a mochila nas costas e partir sem olhar para trás não é premissa de vencedores, e sim de quem está desistindo de uma história porque ela deixou de fazer sentido. Tem muito pássaro que acredita que criar laços é se acorrentar, e você pode ter encontrado um assim. Deixe-o voar… e construa seus próximos ninhos com quem deseja ficar.

Assim como o caramujo se encolhe ao ser tocado, nem todos desejarão permanecer ao nosso lado, e não poderemos fazer nada contra esse fato. Ser o rejeitado e não o que rejeita não nos torna menores ou piores. Ser a mão que toca e não a concha que encolhe não nos torna menos atraentes ou interessantes. E é justamente por isso que temos que ser cuidadosos. Lapidar a dor do abandono para que os sentimentos feridos não amarguem a vida nem impeçam a chegada das alegrias futuras mas, ao contrário, nos ensinem a lutar através da angustia, transformando dor e vulnerabilidade em novas possibilidades.

Nada em você foi covarde e isso tem que bastar. Chega de insistir, fantasiar, romantizar. Chega de se culpar, se vitimizar, se ressentir. Chega de cutucar feridas, enxergar “sinais”, repassar a “cena do crime”. Chega de deduzir, contabilizar, concluir. Confie em mim: esquece o que te fez mal, toque o barco e lute, lute muito por si mesmo. Às vezes a gente precisa perder a fé em alguém para adquirir uma fé enorme na gente mesmo.

Uma ferida antiga irá latejar nos dias de chuva e alfinetar durante os filmes tristes. Mas também será a lembrança de que você seguiu. Não cuide de suas cicatrizes como amuletos de um tempo, e sim como marcas de uma pessoa que escolheu a si mesma. E isso basta.

***

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Fabíola Simões

Escritora mineira de hábitos simples, é colecionadora de diários, álbuns de fotografia e cartas escritas à mão. Tem memória seletiva, adora dedicatórias em livros, curte marchinhas de carnaval antigas e lamenta não ter tido chance de ir a um show de Renato Russo. Casada há dezessete anos e mãe de um menino que está crescendo rápido demais, Fabíola gosta de café sem açúcar, doce de leite com queijo e livros com frases que merecem ser sublinhadas. “Anos incríveis” está entre suas séries preferidas, e acredita que mais vale uma toalha de mesa repleta de manchas após uma noite feliz do que guardanapos imaculadamente alvejados guardados no fundo de uma gaveta.

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