Denise Araújo

Sobre os lentos no mundo da pressa

Sempre fui lenta. Desde criança sou retardatária em relação aos demais. Excetuando-se o desenvolvimento físico e o intelectual, pois nunca faltaram saúde e disposição para estudar, estava comumente um degrau atrás de todos. Tímida e filha de uma mãe zelosa, a introversão e a superproteção maternal fizeram minha lentidão ainda maior. Nos dias de hoje a morosidade é disfarçada com uma enganosa tranquilidade, mas quem conhece-me bem acaba sacando esse traço.

Dizem que novos tempos formam novas pessoas, mas será que é sempre assim? Conseguimos acompanhar com precisão essa linha imaginária chamada tempo? Em 1905, o físico Albert Einstein descobriu que o hoje manjado tempo não corre da mesma maneira em todos os lugares, pois os ponteiros de um relógio parado correm mais devagar em relação a um relógio em movimento. Dispomos hoje das mesmas 24 horas diárias que há um século atrás, mas o tempo agora é outro. Ele parece voar. Tudo é mais imediato e rápido. O imediatismo tomou conta dos nossos dias, e precisamos ter muito cuidado. Não é a toa que a pressa é inimiga do bom senso e de qualquer tentativa de acerto.

Há atualmente uma enxurrada de informações que recebemos desde a hora em que acordamos até a hora em que nos deitamos. Nem todos lidam bem com isso. É contra a saúde mental humana esse descarrego de ideias, uma verdadeira invasão. É necessário autocontrole para optar por uma vida menos “invadida” e diminuir o ritmo dessas leituras. Precisamos também de personalidade para destoar e diferir de um padrão humano cada vez mais arquetípico. Renunciar a essa rapidez é renunciar o maior símbolo hodierno. O homem moderno é tecnológico e veloz. Tem auspícios de invencibilidade e espetacularização da própria vida, cada vez mais projetada para fora, para atender expectativas alheias. Quem não exibe a vida na rede social é alvo de indagações curiosas. Sou ansioso e tenho rede social, logo existo – eis a grande máxima.

Sei que o lugar é comum e chato, mas é necessário conhecer-se e saber o próprio ritmo. Respeitar as características pessoais é resolução preciosa para a vida. Cuidar do próprio ritmo e avaliar as emoções em decorrência disso é preservar a própria saúde. A consciência de que não há um tempo soberano e único para todos nós é essencial. Essa crença de que há um momento certo para tudo é mera ilusão, ou no máximo uma sugestão.

Não podemos ficar reféns de toda convenção simbólica inventada. A mensagem é clara e comprometer-se com a realização pessoal é um valor admirável desde que se obedeça a padrões, a vontades comuns. Ser diferente é injúria. Ser livre, presunção.

Ninguém precisa entrar na faculdade aos dezoito anos, estar na profissão dos sonhos aos vinte e cinco ou ter casado e tido filho aos trinta. Ter uma casa e um carro é algo que o marketing e a propaganda trabalharam direitinho para colocar como necessidade nas mentes humanas, mas isso não é um valor absoluto e não é essencial para a felicidade. Estão nos enganando.

Cada um tem seu próprio ritmo e entender isso é libertador. Colocar para correr certas imposições da sociedade não é ser individualista, é fugir da imposição cega de quem quer guiar nossos modelos de vida e dar pitaco nos nossos afazeres, mas não aceitaria viver nossos dilemas e nossas dores, se fosse dada a oportunidade. Delimitar o outro é fácil, difícil é sê-lo integralmente.

Hoje há pressa para comer, para telefonar, para conversar, para conhecer alguém, para estudar, para trabalhar, para crescer na carreira, para viajar para muitos lugares, para se apaixonar, para terminar o namoro, para transar com muitas pessoas, para ter filhos, para dar opinião, para discordar dos outros, para enriquecer, para postar na rede social, para externar que está aproveitando a vida, para curar-se, para mostrar que superou, para esquecer, para lembrar, para acabar o dia, a semana, o ano…

O problema da pressa e da ansiedade é que elas tiram o prazer do tempo presente, da vida enquanto ela é vivida – e não sonhada, dos momentos bons, de gestos singulares, de oportunidades. Enquanto levamos a vida vivendo o momento seguinte, vamos literalmente pulando etapas, e só nos tornamos gente de verdade vivendo nosso próprio tempo, seguindo nossos mais profundos anseios. Entrar em contato com aquilo que mais nos faz sorrir é um bom começo.

É sempre bom refletir se existem lógicas daninhas por trás de fatos e de ideias, se estão lucrando financeiramente com algum padronismo de comportamento e de consumo, com a própria falta de reflexão geral, com a ausência de justa indignação ou de olhar o mundo mais humanamente. Quem lucra se entrarmos no piloto automático? Se seguirmos feito boiada? Se não questionarmos os processos históricos que levaram-nos a esse modo de vida? Ou que levaram países a terem profundas desigualdades sociais e outros não, por exemplo? Se aplaudirmos as guerras ou as “intervenções militares” como remédio para a humanidade? Se não tivermos empatia com o próximo? Se votarmos em candidatos cujo comportamento imperativo é o da violência? Se simpatizarmos com o individualismo e com isso fortalecer o egoísmo nas pessoas, a ideia de “cada um por si” ? Se naturalizarmos a miséria – uma das maiores indigências humanas? Se não acreditarmos mais no humano e em seus bons propósitos? Se perdermos de vez a esperança? Se não respirarmos profundo e sentirmos que em nós pulsa um ser? Se não atentarmos aos anseios desse ser? Se nos acabarmos em negativismo e insatisfação?

Fui minha carrasca durante muito tempo. Tentei mudar, descaracterizar-me, afinal ser ligeiro e assertivo é tão descolado, né? É, mas essa não sou eu. Admiro os dinâmicos, mas não faço parte desse grupo. Compreendi isso. Ao mínimo passo de tentar abraçar o mundo com as mãos, não durmo à noite. Sabe aquele cágado do desenho animado que está condenado a perder todas as corridas para os outros animais da floresta? Pronto: eu. Apesar disso, sou capaz de viver, e bem. Desencaixada, mas bem.

Escolhi abraçar minha lentidão e carregá-la com carinho. Sofro ao lado de workaholics e pessoas demasiado realizadoras, apesar de ter realizado importantes conquistas na vida e gostar de trabalhar em prol dos meus idealismos. Não costumo casar bem com tratores em forma de gente e fujo de rotinas angustiantes. A pressa nos rouba do momento presente, e nada é tão “vida” quanto o presente.

Denise Araujo

Sou Denise Araujo e não tenho o hábito de me descrever. Não sei se sei fazer isso, mas posso tentar: mais um ser no mundo, encantada pelas artes, apaixonada pelos animais, sonhadora diuturna, romântica incorrigível, um tanto sensível, um tanto afetuosa, um tanto criança ...

Share
Published by
Denise Araujo
Tags: lentos

Recent Posts

WhatsApp vai deixar de funcionar em 35 modelos de smartphones a partir desta quarta-feira; saiba quais!

Se você possui um dos modelos de celular da lista, é hora de fazer um…

1 hora ago

‘Não acho que a gente errou’, diz diretora de colégio de filha de Samara Felippo sobre não expulsar alunas que praticaram racismo

De acordo com a diretora do Vera Cruz, a decisão de apenas suspender as alunas…

2 horas ago

Socialite conta horror de 10 anos em cativeiro de luxo: “Estava puro osso”

Uma história de cárcere privado e manipulação veio à tona no prestigiado Edifício Chopin, na…

22 horas ago

Gatinha sobrevive após ser enviada por engano em pacote de devolução da Amazon nos EUA

A gata Galena, de seis anos, sobreviveu a seis dias de viagem sem comida ou…

1 dia ago

Kate Winslet está pronta para destruir corações neste filme irresistível que acaba de chegar à Netflix

Uma mulher retorna linda e poderosa à sua cidadezinha natal para acertar as contas com…

1 dia ago

Stalker que inspirou “Bebê Rena” reclama de veracidade do seriado e sobre atriz: “Eu não sou feia”

Após o sucesso da série "Bebê Rena" na Netflix, as polêmicas em torno da trama…

2 dias ago