Diferente da maioria das mulheres, eu nunca sonhei com o dia que me tornasse mãe, mas, sempre sonhei com o estar grávida. Me imaginava amando o meu parceiro e a alegria de estar com um bebêzão lindo dentro de mim.

Assim, sonhei, assim, foi. Vivi duas gestações. A primeira após cinco semanas perdi em um aborto espontâneo. Já a segunda estou vivendo um processo profundo de um aborto retido, ou seja, com 6 semanas e pouquinho, o coraçãozinho que se desenvolvia dentro de mim parou de bater. Fui do céu de um futuro materno para o inferno do final de uma gestação interrompida por motivos maiores da natureza.

Apesar do acolhimento doce dos mais próximos, a famosa frase “Deus sabe o que faz” me dava calafrios cada vez que eu ouvia. Eu não entendia por que, mas essa frase não me descia.

Ao invés da curetagem, optei por deixar mais uma vez a sabedoria da minha própria natureza expulsar o feto. Para mim, que passei semanas acreditando que seria mãe, era uma grande agressão em poucas horas “deixar de ser mãe”. Acredito no poder dos processos e seus rituais.

Com um pouco mais de dez semanas, em uma madrugada de mudança de lua minguante para nova, ele começou a se manifestar. Contrações fortíssimas, de morder o travesseiro de dor, suando e gemendo das entranhas eu só conseguia me arrastar para o chuveiro. Assim, por madrugadas seguidas, nua, contorcida embaixo da água quente, eu, minha dor e final da gestação nos alinhamos em oração e cura.

Na primeira noite, meu companheiro me perguntou se eu queria remédios para a dor e eu simplesmente disse: “Não! Eu quero sentir as dores para eu me libertar delas”. Nem eu sei dizer de onde veio essa frase, mas ela também estava nas minhas entranhas.

Nesse ritual de horas embaixo da água, flashes da infância, cenas de rejeição, medos profundos, memórias de terceiros passavam em minha mente. Sim, sou bem sensível, porém nunca tive tantos insights e visões do passado tão rápidas e certeiras. As memórias dolorosas dançavam ritmicamente com a dor física.

Em uma dessas longas noites, entre flashes visuais, contorcida no chuveiro com a luz apagada, rezando, entendi que a partícula do divino em mim criou tudo isso, por mais que inconsciente. Nas maiores profundezas dentro de mim consenti em ser mãe por apenas seis semanas e o bebê também topou essa experiência. Em algum consentimento maior que a nossa lógica pode compreender, tudo estava certo. Encarei cada crença, cada medo, cada julgamento meu e de meus antepassados.

Assim, depois desses banhos, com o corpo dolorido ainda por ter sentido tanta dor, eu voltava para a cama, em paz, sem mente e dormia profundamente com sonhos bons. Ao despertar, sempre me vinha uma sensação de ressaca, como se tudo o que eu vivi na madrugada anterior tivesse sido grande sonho.

A cada manhã, eu me levantei com um sentimento profundo de gratidão. Do tipo: “Olha Deus, eu não sei o que aconteceu mas tô ligada que foi forte e estou viva, a cada dia mais limpa, a cada manhã mais leve. Gratidão!”.

Cada mulher tem seu próprio mundo interior e forma pessoal de atravessar seus períodos de dor. A certeza que hoje tenho é que esse aborto e essa perda foram de uma ordem muito maior que apenas a limpeza do meu útero e a ida de um feto. Uma força da natureza responde a tudo o que guardamos dentro de nós. Podemos esconder no calabouço do inconsciente, mas é uma dádiva quando vêm à luz. Mesmo que a luz pareça sombia, como “dar à luz a uma gestação perdida”. Definitivamente, nada se perde, tudo se transforma.

Meu profundo respeito, admiração e amor a todas as mulheres que já viveram abortos.

Helena Cecília de Fraga Verhagen

Helena é jornalista de formação e escritora por intuição. Em 2015 publicou seu primeiro livro "O Mundo é das Bem-Amadas" que trata sobre o amor-próprio e a reconexão com o sentir e intuir. O autoconhecimento é sua grande paixão e no instagram @asbemamadas ela compartilha mais sobre seus trabalhos com o universo feminino.

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