Ana Flavia Velloso

O fantasma, o enfrentamento e o acordo

No início, era susto, tristeza e confusão. Depois, foi normalidade, trabalho e rotina.
Já disse o Riobaldo: “o correr da vida embrulha tudo”. Mas o correr da vida escurece e silencia. É hora, então, de ter com fantasmas antigos, como o que me apareceu numa dessas noites. A conversa selou os termos de uma convivência necessária. E começou quando o visitante, provocador, misterioso e sem cerimônia, puxou a cadeira e a prosa:
– Contente?
– Ainda não. Mas um dia vou lhe ser grata por tudo.
– Gratidão? Você acha que tenho metas definidas para cada ser humano ?
– É confortável acreditar que uma mão sábia define tudo.
– E que as coisas caminham sempre para o bem, “no melhor dos mundos” do Dr. Pangloss, o personagem que Voltaire imortalizou no seu Cândido. Louvo o otimismo, mas como eu poderia ter um propósito para os eventos diários de cada uma das 7 bilhões de vidas do planeta? A morte do cachorro de João, a traição de José, a demissão de Rita…
– Ignoro como você trabalha.
– Componho fatores: as ações pessoais, o imponderável, vá lá, admito, algum voluntarismo de minha parte…
– Até prefiro pensar que não existe programação nenhuma . Isso me dá liberdade para encontrar o significado das suas ações.
– Como você faz essa leitura de significados?
– Não tento interpretar seus desígnios ou caprichos, mas preciso conferir um papel, no meu processo de amadurecimento individual, às surpresas que você me impõe.
– Trabalhoso, isso.
– Não tenho escolha.
– Não me parece fácil.
– Se insisto, acabo acertando.
– E multiplicando erros…
– ..que só precisam de uma alma atenta para ensinar boas lições.
– Atenta e incansável.
– Para o cansaço existem as pausas.
– É na pausa que a dor se manifesta.
– Tenho reservatórios insondáveis de lágrimas.
– Você pensa que dá as cartas, mas não sabe sequer quando, onde e como tudo termina…
– O percurso é o que importa! Preciso sentir a textura da estrada sob os pés, saudar as pedras e os entraves , dar um nome a cada um deles antes de contorná-los. Acima de tudo, quero não perder a paisagem. Você, Destino, que semeia armadilhas pelo caminho, pode escolher a parada final. O itinerário, traço eu. E decido também se canto ou se choro, se desisto ou recomeço, enlouqueço ou me reinvento. Porque a mim, apenas a mim, pertence a viagem.

Ana Flavia Velloso

Formada em Direito pela Universidade de Brasília, e mestre pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Advogada, é professora de Direito Internacional Público. É muito feliz na escolha profissional que fez, mas flerta desde sempre com as letras.

Share
Published by
Ana Flavia Velloso

Recent Posts

Amor, interesse e jogo psicológico: o filme da Netflix que incomoda sem pedir licença — e acerta onde dói

Parece comédia romântica, mas este filme da Netflix joga sujo com amor e dinheiro ❤️‍🔥💸

2 horas ago

Nova técnica criada no Brasil contra o câncer de mama, que congela tumor com nitrogênio líquido, atinge 100% de eficácia

🎗️ Tumor congelado a −140 °C: técnica contra câncer de mama tem 100% de eficácia…

2 horas ago

Após eliminar 75 kg, Thais Carla impressiona seguidores com transformação das curvas do corpo; veja antes x depois

Thais Carla mostra novo corpo após eliminar 75 kg e antes x depois deixa a…

2 horas ago

Olhe para seus dedos agora: o formato deles pode revelar traços da sua personalidade que você nunca percebeu

🖐️ Faça o teste: o formato dos seus dedos pode revelar traços da sua personalidade…

2 horas ago

SBT explica por que episódio de Chaves ficou quase 50 anos inédito na TV

Episódio especial de Natal de “Chaves” nunca tinha passado na TV aberta (até ontem!) —…

9 horas ago

Saiba como o SBT se saiu no Ibope após trocar Zezé di Camargo por episódio inédito de Chaves

⚠️ Após polêmica, SBT trocou Zezé por Chaves de última hora — e o Ibope…

9 horas ago