Medo de “julgar” o outro é desculpa de quem não assume que também erra.

Imagem de capa: Viktoriya Pavlyuk/Shutterstock

Deixemos de hipocrisia, vai! Todo mundo aqui já julgou, acusou e condenou o outro a torto e a direito. Não é certo, mas é humano. E negá-lo é o jeito mais fácil de perpetuar o erro. Melhor é assumir e corrigir.

Mas não. Enfiamos em nossa própria cabeça a minhoca de que somos “os mocinhos” e nos dispensamos de qualquer autocrítica. Seguimos errando na prática e tagarelando a teoria de que somos perfeitos e bem resolvidos, discursando o quanto não julgamos ninguém, convencidos de que somos tolerantes e bacanas. Balela! Cegos feito morcegos, penduramos de ponta-cabeça no galho do autoengano e dormimos acreditando na própria mentira.

Não, eu não estou defendendo o “julgamento” geral do outro. Eu só acho patético que toda tentativa de reflexão a respeito de qualquer comportamento duvidoso seja generalizada como “julgamento”.

Você diz “aquele canalha espancou a esposa” e alguém responde “cuidado! Você está julgando o outro”.

Você pondera “o sujeito passa o réveillon no retiro espiritual e volta no Ano Novo pior do que antes, enganando, insultando, maltratando seus funcionários” e um santo contrapõe: “pelo menos ele está tentando, cuidado, seja tolerante, você está julgando o outro…”.

Olha aqui, prezado humano perfeito e irrepreensível: ser paciente e compreensivo com o outro não quer dizer passar a mão na cabeça dele enquanto assistimos a seu comportamento tacanho, não. E discutir o que acreditamos ser uma má ação não é necessariamente um “julgamento”. Antes, é uma tentativa de aceitar e compreender o outro no que pensamos ser a sua imperfeição. E isso não se faz sem discussão, sem reflexão, sem pensamento, isso tudo que os perfeitos adoram interromper repetindo que não se pode “julgar o outro”.

É só tocar em determinado assunto, a grosseria, a hipocrisia, o mau caratismo, a sacanagem, e vem uma entidade perfeita, a materialização das virtudes do mundo, acusá-lo da prática maldita de “julgar o outro”, numa espécie bizarra de “julgamento do julgamento”.

Se seguirmos assim, nos autoincapacitando de pensar e de tocar certas feridas, em breve seremos nada além de mulas estrábicas, antas estúpidas, papagaios adestrados repetindo asneiras e se achando “autênticos”, mas incapazes de formular um raciocínio, de resolver nossas questões e de seguir em frente. Isso se chama paralisia!

Aí vem outro bastião da moral e dos bons costumes e repete em tom professoral: “ahh… se cada um cuidasse da própria vida e deixasse a do outro isso não aconteceria…”.

Não mesmo? Será tão simples assim? Será que ninguém percebe o quanto esse tipo de receita pronta é superficial, simplista, insuficiente e cínica?

Já que não estamos sós, que vivemos em sociedade e que há convenções coletivas regulando o comportamento e as ações de cada um, em certas instâncias é preciso, sim, olhar “o outro” como a nós mesmos. Em seus acertos e em suas mancadas. O que não me interessa é a sua vida pessoal, o que você faz no recanto de sua individualidade. Já o seu comportamento em sociedade, aquilo que me afeta direta ou indiretamente, me interessa muito!

Esse medinho de “julgar” o outro é a desculpa perfeita de quem tem preguiça de pensar. Preguiça de questionar os próprios erros. Quem sabe um dia os perfeitos desconfiem. Mas eu acho difícil. Gente perfeita é tão perfeita e evoluída que dispensa trabalho pesado. E pensar, cá entre nós, é esforço braçal.

André J. Gomes

Jornalista de formação, publicitário de ofício, professor por desafio e escritor por amor à causa.

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