Denise Araújo

Foi a segunda vez que vi meu pai chorar

Era fim de 2008, meu pai adoeceu sério e precisou ficar internado por quase dois meses no maior hospital público de Natal. Ele teve todas as veias perfuradas e inflamadas, foi entubado em todas as entradas imagináveis, e não se descobria o que ele tinha. Foram nesses dias internados no hospital que vi meu pai chorar pela segunda vez na vida. A primeira tinha sido quando uma irmã muito querida dele faleceu de um câncer violento. Meu pai é desses homens à moda antiga, não chora, vive a ruminar baixo, implode as emoções. Uma tristeza.

Ver meu pai chorando de dor e desespero, incerto de seu fim naquele hospital, acabou comigo. Ele chorava e gritava, queria arrancar as agulhas, os aparelhos e o respirador que nele estavam. Eu corria para chorar dentro do banheiro quando percebia que não aguentaria disfarçar meu estado, e demonstrar que a força que tinha já não estava mais ali.

Recentemente outra urgência levou meu pai novamente a precisar ficar entubado no hospital, pois teve arritmia cardíaca por algumas semanas e teve que implantar marcapasso. O final foi feliz das duas vezes.

Agora era meados de 2010. Um tio materno faleceu com esclerose lateral amiotrófica, uma doença que afeta os sistemas neuromotor e respiratório dos doentes. Meu tio acordou na madrugada com grande falta de ar, o filho veio às pressas e levou-o ao pronto-socorro mais próximo, mas chegando lá meu tio faleceu. Meu primo conta que viu o pai perdendo a consciência no carro, buscando a respiração sem conseguir, mas nada pôde fazer por ele. Minha mãe desde então, não sei se por hipocondria ou outra motivação psicológica gerada pelo luto, desenvolveu um medo da possibilidade de ter falta de ar, e diz ter pavor de morrer dessa forma.

Nunca sei direito o que dizer à minha mãe quando ela demonstra ter medo de não conseguir respirar, mas peço pra ela tentar não pensar tanto nisso, pra gente não se preocupar com o que não é real. Hoje vendo as pessoas com covid-19 entubadas, pois a doença provoca incapacidade pulmonar, vieram-me as imagens de meu pai entubado, penso na agonia do meu tio nos seus minutos finais, nos medos da minha mãe… Ela, que não é boba, já percebeu que os doentes de COVID-19 precisam de respiradores e veio me perguntar sobre isso. Tive que falar que a doença afeta os pulmões. Deve ser horrível buscar o ar e não conseguir, e por pensar nisso vejo que incorporei parte do temor dela. Como deve ser difícil essas pessoas lutarem por suas vidas sabendo que essa doença tem levado a tantos,.. Estando tão frágeis e dependentes, entubadas por dias…

O momento é grave, é definitivo, um marco histórico. Essa pandemia colocou parte do planeta em isolamento social, tem levado muitas vidas em pouco tempo, sem escolher raça, local ou condição social. Os meios de contágio são tão amplos que adotar medidas de higiene e de isolamento social é imprescindível, mas anda assim são medidas minimizadoras, não garantem a totalidade da segurança. É aí que entram a fé, a mística, a necessidade filosófica de compreensão. Um vírus microscópico minando existências, trazendo o que há de pior e de melhor nas nações, nas pessoas, revelando crises entre governantes e cidadãos e mais tantas outras crises humanas. Reveremos nossos países interiores? Estamos diante do acontecimento que definirá nossa geração, guiará nossos dias futuros. Transigiremos ou mudaremos?

Dizem que no silêncio da quase não existência muitos veem a vida passar num flash. Esse vírus corona deve fazer efeito parecido. A OMS falou que há como vencer o vírus. Mas ele não passará inócuo, deixará como legado a necessidade de repensar nossa existência. Que vença a vida e que a seta do tempo não pare, seguindo sempre a caminho da evolução humana.
***

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Denise Araujo

Sou Denise Araujo e não tenho o hábito de me descrever. Não sei se sei fazer isso, mas posso tentar: mais um ser no mundo, encantada pelas artes, apaixonada pelos animais, sonhadora diuturna, romântica incorrigível, um tanto sensível, um tanto afetuosa, um tanto criança ...

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