Guilherme Moreira Jr.

“Eu, Daniel Blake” escancara o Estado sem sentimentos

Ken Loach foi além, como há muito tempo não o fazia. “Eu, Daniel Blake” é merecedor das nossas palmas, mas também da nossa atenção. Isso porque o veterano cineasta inglês arregaça as inúmeras burocracias do Estado, onde o cidadão de bem dificilmente é ouvido e contemplado nos seus direitos. É um filme sobre a falta de sentimentos e respeitos que, ironicamente, pagamos para não termos.

O roteiro escrito por Paul Laverty é mais uma parceria de Loach que discute os problemas dos cidadãos impedidos, maltratados e ludibriados pelo governo. Esse, responsável em nos prover segurança, liberdade e bens básicos para sobrevivência. Ignorar qualquer aspecto sentimental seria injusto porque a produção é respaldada, em cada diálogo e plano-sequência, na mais profunda imersão da relação entre os poderes públicos e civis. Mas antes que esta reflexão acarrete pensamentos distorcidos ou isentos de fatores importantes, precisamos entender, nada disso ocorre sem o nosso aval, sem o nosso silêncio.

Loach já havia atentado anos atrás sobre essa relação desumana com a qual trabalhadores são escravizados em Pão e Rosas (2000), que mostrava a luta de duas irmãs mexicanas numa América altamente fervorosa contra imigrantes. Infelizmente, nada mudou muito após dezessete anos. Em “Eu, Daniel Blake”, o embate continua, mas agora na pátria mãe do cineasta. Isso mostra que, independente do país, ainda existem mecanismos e obstáculos criados para desistências de benefícios fundamentais para uma vida digna de qualquer um. E isso nada tem a ver com argumentos e regras necessárias para uma manutenção do Estado ou mesmo para controle, mas concebidas unicamente com o intuito de separar tantos Daniel´s quanto de Katie´´s – mãe de dois filhos, excludente do sistema, do afeto.

O entristecedor é que continuamos sendo desfalcados a cada interesse do Estado em tapar o sol com a peneira. Queremos fazer o certo do jeito errado e quem sofre somos nós, pais, mães, solteiros, aposentados, negros, homossexuais, trans e todas as classes que estejam cuidadosamente destacadas por uma caneta qualquer em um formulário qualquer, seja ele físico ou digital.

“Eu, Daniel Blake” é o tipo de filme que não adianta copiar e colar a sinopse. Que não adianta deferir elogios e bater palmas. Esse é o tipo de filme que você precisa chegar e assistir. Fazer essa escolha consciente, interessada e aberta, pois estamos nos aproximando da barbárie e da subjugação entre quem pode e merece algum sentimento, algum alento. Loach e Laverty realizaram um abrir de olhos e coração, mas enganam-se quem pensam ser uma mensagem de protesto unicamente ao Estado. A mensagem é destinada também a todos os dissidentes dessa violência que chega quando mais precisamos e, certamente, não pedimos.

Gui Moreira Jr

"Cidadão do mundo com raízes no Rio de Janeiro"

Recent Posts

Minissérie que dramatiza história verídica com honestidade brutal é uma das melhores produções da Netflix

Uma série poderosa e comovente que mergulha nas profundezas da experiência humana, contando uma história…

13 horas ago

Zeca Pagodinho é tietado por Temer, não o reconhece e diz: “Te conheço de algum lugar”

Em um evento em São Paulo, o ex-presidente pediu para tirar uma foto com o…

13 horas ago

Passageiro fica preso em banheiro de avião durante voo e recebe bilhete: “Tentamos o nosso melhor”

Um voo da SpiceJet de Mumbai para Bengaluru, na Índia, transformou-se em uma experiência angustiante…

1 dia ago

WhatsApp vai deixar de funcionar em 35 modelos de smartphones a partir desta quarta-feira; saiba quais!

Se você possui um dos modelos de celular da lista, é hora de fazer um…

1 dia ago

Socialite conta horror de 10 anos em cativeiro de luxo: “Estava puro osso”

Uma história de cárcere privado e manipulação veio à tona no prestigiado Edifício Chopin, na…

2 dias ago