Despeço-me de quem já fui

Despeço-me do homem que já fui. Do cara que construí e levei nos braços até ontem ou anteontem. E com ele despeço-me de todos os meus meninos, de toda a esperança infundada de um dia ser maior. E para quê? Eu te pergunto. Despeço-me com um abraço demorado que aperta, com o peito envergado para dentro que diz – Fica um pouco mais – pedindo e também respondendo.

Despeço-me do homem que já fui, de minhas inseguranças, de meus medos que não me matavam, nem me fortaleciam e sigo levando somente os fatos. Enfrento de frente o que está adiante. Afasto de lado o que não está ao lado, mas à margem. Deixo para trás o que não é memória, nem aprendizado, só culpa, estridente, quase que bonita como as latas amarradas que perseguem os carros dos recém-casados.

Acho que me casei com minha culpa. Depois pari minhas inseguranças, ninei minhas vergonhas, só minhas, filhinhas, miúdas, até serem grandes o bastante para também me carregarem. Tudo meu, tudo eu, tudo de mim, eucentrista como toda mãe.

Despeço-me então todos os dias, acompanhando a velocidade do reciclar da matéria. Nasce todo dia e morre a célula. Nascem todo dia e morrem minhas ideias. Nasço todo dia e, logo depois, morro. Sem estardalhaço, ali naquelas horas caladas entre o tatear insone dos chinelos para ir ao banheiro de madrugada e o despertar vitorioso no segundo que antecede o despertador.

Despeço-me do homem que já fui todas as manhãs, engolindo-o junto com o café amargo demais ou demasiadamente doce. Despeço-me dele e vou perdendo minhas histórias, minhas manias. Elas já foram de fato minhas ou foi alguém que me deu?

Vou abandonando minhas notas longas, minhas semibreves, como uma sinfonia que se simplifica dia após dia, até ser apenas três ou quatro notas que abrem um elevador, que empurram um metrô, que ligam um smartphone, que nunca são ouvidas diferentes, mas que igualmente jamais são iguais porque despedem-se de si segundo por segundo.

A pessoa que vocês conheceram não vive mais aqui. Destinatário não encontrado, favor devolver ao remetente.

Imagem de capa: NonLoeiterd/Shutterstock

Diego Engenho Novo

Escritor, publicitário e filho da dona Betânia. Criador do blog Palavra Crônica, vive em São Paulo de onde escreve sobre relacionamentos e cotidiano.

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