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Uma carta para desfazer inversões

Apesar de você dizer que não se importa, de se fazer de indiferente e autossuficiente, eu gostaria de poder, de alguma forma, desfazer os equívocos de outrora. Eu devo te confundir com o meu jeito estranho de agir, ao ver-me aos poucos tirando o véu das reservas ostensivas diante de todos, exceto diante de você. E então, mesmo quando estivemos menos rodeados de intrusos dessa cumplicidade silenciosa que temos, minha atenção não lhe alcançou.

Esforcei em distrair-me, foquei em todos os focos que nos mantivessem distantes apesar das cadeiras lado a lado. Ouvi e ri de suas piadas, fui expectadora sua, como estivéssemos um no palco, outro na plateia, e por vezes trocávamos de papel, eu falava, mas nunca falava para você. Falava para outro, enquanto tentava entender o que eu estava fazendo. Elaborei involuntárias escapadelas dos seus gracejos, eles tentavam quebrar o gelo, eu quebrava todas as possibilidades, quebrava as pontes que nos abrandariam a lonjura.

Me afogo em angústia ante sua frieza, reprovação, hostilidade e principalmente: indiferença. Por outro lado, nego os elogios, fujo do calor, escorrego dos toques, desvio dos olhares. Só te encaro de longe, de espreita, de onde não possa me ver olhar-te. Quando você está, eu falo para você fingindo falar com os outros, ignoro sua presença ao mesmo tempo em que a convido de forma transviada. Tanto absurdo, que ao tomar consciência dessa fuga desenfreada que empenhei desde o primeiro contato, senti meus golpes em fúria contra minha própria estupidez.

Todo meu elenco de tragédias se desfez em um monólogo ininterrupto e eloquente das memórias de uma pessoa que se auto sabotava. Narrava para mim mesma passo a passo como fui desmembrando cada tentativa de laço. Descobri-me rainha das conquistas vazias, das ilusões febris, das relações efêmeras. Tudo o quanto investi sem medo e que, portanto, houve algum acerto, era tudo o que não queria. De fato, não me entendo, será que tenho medo de realizar-me? Escapar do beijo sonhado, enrijecer-me no abraço querido, silenciar-me ante o diálogo esperado, negar-me a conhecer o desejado mistério das suas histórias protegidas atrás de uma armadura de ouro…

Depois me lamento, como fosse injustiçada, não ter uma segunda via de acesso a este caminho desconhecido. Depois da porta aberta, vacilar, sair em disparada após trancar a fechadura e jogar a chave por baixo da fresta. Depois lamento que continue lá trancado enquanto eu vago pelo vale tempestuoso das minhas emoções desvairadas. Como se tudo já não fosse suficientemente complicado. Tentei me consolar invocando meu passado, minhas decepções, os medos, os atrasos, os percalços que me desenharam feridas rendadas nos pés descalçados. Interrompi-me para os suspiros e peguei-me distraída lendo as linhas desses símbolos misteriosos que a vida pintou em minha pele. Descobri sobre esse impulso de levar meus pés às pedras pontiagudas, tão habituados à ferida, penso dependerem delas para continuar caminhando, para continuar a criar.

Todavia, sinto superficial sua indiferença, assim como minha teimosia. Apesar delas eu vejo atrás do meu véu o desejo da nudez, atrás da sua armadura o desejo da leveza. Não somos assim tão estranhos em nossas defesas. Talvez indefesos pudéssemos nos encontrar. É a minha confissão presunçosa conjecturando a sua. Em palavras simples o acontecido: fujo de uma aproximação sua pelo intenso desejo de me aproximar, por saber que não haverá volta, que não haverá esquecimento, que não haverá indiferença. Me escondo nas dores conhecidas pelo medo de novas dores.

Gostaria que essa iluminação sobre minha voluntária expiação fosse suficiente para resignar-me diante dessas atitudes invertidas. Que na minha rudeza lhe fosse desvelada a estima, que na minha distância lhe fosse revelado o desejo de lançar-me, que na minha frieza lhe tocasse o calor dos meus afetos. Mas da consciência ao acontecimento há um longo trajeto. Queria tornar-me, só pelo intelecto, uma guerreira. Sabotar o treinamento para chegar até lá. Acabei por sabotar a mim mesma. Assim é a vida. O que se revela no pensamento não é o suficiente para aprender a viver. E numa brecha sua talvez eu venha a me empenhar. Talvez, novamente, eu involuntariamente, deixe pra lá. Me deixe pra lá. Continue pra lá. Pudera você também fosse pra lá, comigo…

Paula Peregrina

Peregrina de territórios abstratos, graduou-se em Psicologia, trocou o mestrado e uma potencial carreira por uma aventura na Letras e acabou forasteireando nas artes. Cruzando por uma vida de territórios insólitos, perseveram a escrita, a poesia e o olhar crítico, cristalino e estrangeiro de todos os lugares.

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