Um texto para não ser amado

Imagem de capa: Khomenko Maryna/shutterstock

Sem coerência, sem coesão, sem conclusão. Uma lista para não instruir.
Atenção: este conteúdo é impróprio para pessoas intolerantes à ironia e ao sarcasmo, pode causar convulsões de riso, desespero, náuseas, revolta, impotência e incontinência de agressividade ao autor.

1. O mundo anda muito confuso, mas não sei se algum dia não foi. Não há esperança no passado, não há esperança no futuro. Não há pessimismo ou otimismo. Predomina a perplexidade de não ter direção.

2. O mundo anda confuso. Os conceitos foram roubados. Não encontraram o ladrão. Tiraram dos ricos para distribuir aos pobres – de espírito – inviabilizaram ainda mais a comunicação.

3. Não sabemos mais o significado de nada, não fazemos sentido. Capitalismo virou termo para se referir a qualquer troca comercial. Socialismo virou sinônimo de qualquer tipo de empatia ou programa social.

4. Todo “mal comportamento” é psicopatia. Os DSMs ou CIDs poderiam ser queimados, não fossem pelas neuroses nossas de cada dia e seus respectivos psicofármacos. A psicanálise perdeu o glamour. Todos estamos doentes de emoções que não cabem na rotina do comer, dormir, trabalhar, produzir, morrer com resignação.

5. Toda tristeza virou depressão. Ter mais de uma emoção tornou-se bipolaridade. Ter patologias virou motivo de orgulho, como um troféu, mas também de reclamação e solução em pílulas. Os mesmos dependentes criticam todas as outras “toxinas”, inclusive as “naturais”. Não estou falando de maconha. Estou falando de coisas como glúten, lactose, carboidrato, ocitocina…

6. Incita-se ao budismo como incita-se à agressão. Tudo é relativo, mas as verdades são absolutas. Temos alternativas, mas não temos escolha.

7. Muitos desejam que um meteoro destrua a humanidade. Eles fazem parte da humanidade. Somos todos mais ou menos suicidas e homicidas. Mas, não por isso.

8. Temos meio de comunicação, mas não alcançamos ninguém. Informação há sobre o mundo inteiro, mas quem se lembra do que aconteceu ontem?

9. Lemos mais do que já se leu em todos os tempos, nossas referências são duvidosas. Temos problemas de interpretação como nunca.

10. É importante ser trabalhador e estudioso, mas na prática o trabalhador não é bem-vindo aos lugares “privilegiados” com o seu suor e suas roupas encardidas, os estudiosos são parasitas que vivem do dinheiro dos cidadãos de bem. Os cidadãos de bem não são trabalhadores nem estudiosos. Quem são?

11. É preciso estar sempre muito bem informado e embasado para opinar em uma discussão, com alguém muito mal informado e sem embasamento.

12. Dizem valorizar a experiência de vida mais do que aos bens materiais, mas também dizem que é preciso ter um carro do ano, uma casa na zona sul e alguma celebridade para ter experiência de vida.

13. Professores são formadores de opiniões e essenciais para educação, mas querer ter autonomia e receber tão bem quanto um juiz já é demais.

14. Os políticos não prestam, os apolíticos também não. Esquerda e direita são as únicas opções. Ninguém sabe mais o que é direita ou esquerda. Depende da conveniência do discurso. Ou talvez seja apenas a mão que se escreve, os lados da rua, uma direção no GPS.

15. Trabalhamos para viver, vivemos para trabalhar. Mentira. Trabalho e emprego não são a mesma coisa, mas se você não contar para ninguém, podemos só continuar repetindo isso.

16. Então tá, nos ocupamos de atividades remuneradas para viver quando aposentarmos e tivermos tempo para isso. Mas não há mais muita perspectiva para aposentadoria. Essa é a nova utopia.

17. Não temos mais utopia, mas queremos um mundo melhor. Não sabemos como. Só postamos. Não adianta só fazer a própria parte. Mas não damos conta de mudar o mundo. Para isso é preciso estar na “política”. Chegando lá, o que será que será? “O que não tem governo, nem nunca terá. O que não tem vergonha, nem nunca terá. O que não tem juízo”.

18. Fala-se de revolução, posta-se sobre revolução, revolucionários batendo “com a bunda no chão”. O subversivo virou opressão. Caretas não passarão. Tem que ir pra rua, nem que seja só pra tomar catuaba.

19. A hipocrisia é do outro, a maldade é do outro, “o inferno são os outros”, já dizia aquele cara, acho que era Nietzsche*.

20. Todo ato de coragem, toda rebeldia, todo questionamento, toda “revolução”, poderá ser legitimamente transformada em objeto de consumo. Você pode se isolar ou aproveitar a festa. Sua imagem não te pertence mais. Sua dignidade também não, é só ilusão.

21. Debater é importante, mas só com quem tem a mesma opinião. Do contrário, fica-se apenas com o “bater”.

22. O público é privado, o privado é público, a privada foi pro museu, porque questionava o museu, ninguém entendeu, todo mundo louvou. Agora arte é coisa de vagabundo. Não queremos nada menos do que a Mona Lisa reinventada.

23. Todo mundo é generalização, mas só para quem discorda. Só que não dá para escrever um texto de algumas centenas de palavras explicando tim-tim-por-tim-tim. Melhor escrever coisas para concordarem. Melhor escrever coisas para não concordarem e gerar polêmica. Melhor não escrever.

24. É preciso estudar para ser alguém na vida. Desemprego, subemprego, sensação de inutilidade diante de tudo o que aprendeu. Melhor ter contatos. Sem “recursos” prévios – materiais e/ou humanos -, seu diploma de papel reciclado não cola nem de enfeite.

25. Temos tecnologias de última geração e capital humano bruto. Bruto demais para comparar com os séculos 18, 19, 20… Meu Deus! Sou ateu, mas não está fácil para ninguém… Até porque “o papa é pop”, minha pampa é pobre e “eu me sinto um estrangeiro”.

26. Não se precisa de dinheiro para ser feliz. Tente limpar a bunda sem ter dinheiro. Uma bunda limpa é requisito mínimo para ser feliz, acredite.

27. Quase me esqueço da possibilidade de celebrar a natureza, levando até ela os gases dos veículos, os lixos urbanos (ou não), nossas fezes contaminadas. Tudo acompanhado de muitas fotos e citações. E como ando mal de memória, tudo isso também tem custos. A propósito, tente ser um morador de rua buscando paraísos naturais, encontrará infernos fiscais. Toda fronteira tem seus coiotes, raposas, javalis e leões.

28. O mito do eleito permanece, todos querem ser eleitos e realizarem o seu sonho, todos acham que com ele é diferente e é só lutar. Mas não têm nenhum plano e não querem fazer nenhum sacrifício. Passam mais tempo reclamando do que não conseguiram do que tentando realizar o tal empreendimento. Dizem que o que importa é realização pessoal, mas não ter reconhecimento é foda…

29. O mundo anda confuso, todos querem um amor para chamar de seu, que o aceite como é, mas que mude por ele.

30. O mundo anda confuso, e eu não tenho uma conclusão. Tenho medo de andar na rua, mas sou mais livre do que nunca, porque posso dizer/escrever/cuspir tudo isso e ter cabelo azul.

31. Mas, pensando bem, a internet é o lugar do ódio e da agressão, é o lugar da exposição e do anonimato, é o lugar da solidariedade e da empatia. É o lugar que nos falta no dia-a-dia.

32. A vida continua sem coerência, sem coesão, sem conclusão. Não vale a pena concluir, pois começaria tudo de novo. Por favor, continue… um dia, vamos rir de tudo isso.

*Sim, eu sei que foi Sartre.

Paula Peregrina

Peregrina de territórios abstratos, graduou-se em Psicologia, trocou o mestrado e uma potencial carreira por uma aventura na Letras e acabou forasteireando nas artes. Cruzando por uma vida de territórios insólitos, perseveram a escrita, a poesia e o olhar crítico, cristalino e estrangeiro de todos os lugares.

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