“O brasileiro não nasceu para ser inteligente”, assim começa essa crônica de Nelson Rodrigues

Sem medo do Conselheiro Acácio (Nelson Rodrigues)

O brasileiro não nasceu para ser inteligente. E direi mais: — nem pode ter um parente inteligente. Parece exagero ou piada. (Já expliquei que as verdades mais solenes podem assumir, por vezes, a forma de piada.) Nada mais trágico para uma família brasileira do que ter, em seu seio, um caso de inteligência. Eu citaria, para não ir mais longe, o exemplo de Rui Barbosa.

O maior dos brasileiros vivos. Lembro-me de sua agonia em Petrópolis. Rui estava morre, não morre, e já um vizinho nosso antecipava: — “O maior dos brasileiros mortos”. Eis o que eu queria dizer: — o grande baiano foi uma das mais negras tragédias familiares de que tenho notícia. (Não estou insinuando nenhum escândalo, desses que, em nosso tempo, merecem a manchete de O Dia e da Luta Democrática. Não, não. Por esse lado a família de Rui foi de uma correção imaculada. Faço a ressalva com a maior ênfase.)

A partir do momento em que, ainda menino, manifestou o seu gênio, a família perdeu a paz, o sossego, o diabo. Um vago primo, ou cunhada, ou tia, deixou de ter vida própria. Ninguém namorava, ninguém noivava, ninguém casava e nem enviuvava. O tempo era pouco para admirar o Gênio. E ficava toda a parentela de mãos postas, estupefata. Durante setenta anos, a família foi massacrada. Velórios, bodas, partos, nenhum acontecimento lúgubre ou festivo valia uma coriza daquele que era “o maior dos brasileiros vivos” e seria “o maior dos brasileiros mortos”.

Pergunto se, durante os setenta anos intermináveis, algum primo, ou tia, ou filho, conheceu por um momento o tédio do mito. Setenta anos não são setenta dias. E pergunto se terá havido, na família de Rui, algum caso de admiração exausta. Não sei, ninguém sabe, nem Deus.

E o próprio Rui? Como se comportava ele diante de si mesmo? Como reagia diante da própria glória? Eis a verdade; — o gênio nunca foi um hábito para Rui. E aí está um traço forte do brasileiro e repito: — o brasileiro não sabe ser inteligente com naturalidade. Vejam o francês. Jean-Paul Sartre, por exemplo. É um homem que inspira, aqui, admirações abjetas. Dizem: — “A maior cabeça do mundo”. Pois Sartre é inteligente com relativo tédio. E, por vezes, tem o que eu chamaria “a nostalgia da burrice”. Nessas ocasiões, diz as bobagens mais hediondas.

Do mesmo modo, o inglês, que também é inteligente sem espanto, sem angústia, sem deslumbramento. E não há mistério. O inglês, ou francês, encontra a língua feita e repito: — um idioma que pensa por ele. Uma lavadeira parisiense é uma estilista, um cocheiro fala como um grã-fino de Racine. Ao passo que nós temos de recriar, dia após dia, a nossa língua e pensar em péssimo estilo.

Mas citei Rui e passo a um exemplo mais moderno: — o nosso Guimarães Rosa. “Ser Guimarães Rosa” não foi, jamais, um hábito para Guimarães Rosa. Era um permanente espanto, uma permanente surpresa, uma permanente festa. Dormia e acordava espantadíssimo de ser ele e não um imbecil qualquer. Conta-me Carlos Heitor Cony um episódio magistral. Vamos ao fato.

Os dois encontraram-se em Brasília. Conversa daqui, dali e, de repente, Guimarães Rosa faz pose. (Na vida real, Guimarães Rosa posava muito de Guimarães Rosa.) A seu lado Cony perfila-se como se fosse ouvir o Hino Nacional. Suspense. E, então, erguendo a fronte e olhando para o fundo da tarde, disse o grande ficcionista: — “A vida de Getúlio não fazia prever aquele fim”. Retira o olhar do vago horizonte e perscruta na cara de Cony o efeito provocado.

Como única testemunha auditiva e ocular da tirada, Cony não sabia o que dizer e o que pensar. Não há ninguém, vivo ou morto, que não faça suas concessões ao Conselheiro Acácio. Impossível nascer, envelhecer ou morrer sem ser acaciano muitas e muitas vezes. Mas um Sartre é acaciano com a maior e a mais insolente desfaçatez. Aqui no Brasil o gênio francês deu uma entrevista coletiva. Em dado momento, saiu-se com esta: — “O marxismo é inultrapassável”.

Mas Sartre falava assim porque nos supunha, a todos, cristalinos imbecis. Já o Guimarães Rosa acreditava na própria frase e insisto: — ele a trabalhara. Numa amarga perplexidade, Cony limitou-se a um pigarro: — “É mesmo, é mesmo”. E passaram a outro assunto. Mas ali estava o brasileiro. O brasileiro inteligente tem vergonha de dizer um modesto, um honrado “oba”. Sim, ele se considera degradado se largar um “bom-dia” sem lhe pingar gênio.

Depois da morte do autor do Grande sertão, o Cony fez uma devassa na obra rosiana para descobrir o que nela há de acaciano. Mas é um equívoco. Cony não quer aceitar que o gênio está muito mais próximo do Conselheiro Acácio do que o idiota ou o medíocre. Falei de Sartre e posso lembrar outro gênio, Bertrand Russell. Num dos seus manifestos pacifistas diz ele, por outras palavras, o seguinte: — “Vive-se no comunismo, no capitalismo, como se viveu no nazismo. Portanto, não vale a pena morrer por coisa alguma. Devemos viver, que é muito mais seguro”.

Dirá alguém que não foi isso que ele quis dizer. Foi, sim. Está lá no hediondo manifesto, publicado em todos os idiomas. Ora, o que diz Bertrand Russell é de uma torpeza cristalina. Por outro lado, o que ele propõe não tem nada a ver com o ser humano. O mais degradado dos seres prefere morrer por três ou quatro valores de sua estima. Um gangster morre defendendo o seu estilo de vida.

Mas dizia eu que um simples caso de inteligência, numa família brasileira, pode destruí-la. Conheci uma menina que, por azar, era filha de um pai inteligente ou supostamente inteligente. Tias, cunhadas, vizinhos, cochichavam: — “É uma cabeça! Uma cabeça!”. O velho fazia uns sonetos parnasianos. Li um deles, que a filha me mostrou, tremendo de beleza. Guardei dos versos uma palavra que ainda me atropela: — arrebol. Pois a garota não casou nunca. Viveu para o pai. Morreu antes dele, tuberculosa. Pode-se dizer que foi assassinada por uma meia dúzia de sonetos jamais publicados.

Volto agora a Guimarães Rosa. Leio nos jornais que suas filhas estariam brigando. E com quem? Com a senhora que viveu trinta anos com o grande ficcionista. Escapa-me um comentário de vizinho: — “Trinta anos não são trinta dias”. Não se trata de uma rixa intranscendente. Não. Segundo sei, a coisa assume a forma judicial. Há advogados, de um lado e do outro, chicanando em torno de uma obra formidável. Para sair uma linha de Guimarães Rosa é uma batalha forense.

Estive, há tempos, com uma das filhas do escritor, Vilma. Foi uma conversa carinhosíssima. Mas Vilma negou, com a maior veemência, que existisse a briga. Absolutamente, e pelo contrário. Mas agora insistem os jornais: — a obra rosiana estaria praticamente interditada, enquanto não se decide a questão. E, então, eu pergunto se uma família brasileira pode devorar-se porque um dos seus membros é ou foi inteligente. Mas, como não tenho medo do Conselheiro Acácio, repito, para as filhas do grande autor, esta reflexão de vizinho: — “Trinta anos não são trinta dias”.

[17/2/1968]

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