À moça de olhos tristes

Há alguns dias você chegou e quebrou a minha rotina tranquila. Como se eu vivesse com plumas nos pés, seguia minha vida distraído, até ter minha leveza umedecida pelas nuvens da sua presença. Não é tempestuosa, nem intensa, mas como os dias mornos que lamentam a chuva finda em seu leito, lentamente deixando subir o vapor do passado, denso e embriagado de sol encoberto. Desde a primeira vez em que te vi, você parecia fugir de casa. Parece fugir de casa todos os dias, dia após dia, uma vida de fugas frustradas e retornos vãos.

Eu sei onde você começa a sua jornada, mas não sei onde termina. Seus olhos castanhos profundos estão sempre rodeados pelo azul opaco das noites mal dormidas. O pó com o qual você tenta velar os traços e as cores da solidão se recusa a cumprir sua função, por uma questão de ética, deixa exposta, ainda que coberta por um delicado véu de artifícios, a tristeza que guarda, a tristeza que cresce e já não pode ser escondida. Ele a condena silenciosamente, para que, talvez, alguém a salve. Todos nós precisamos, às vezes, de alguém que nos salve.

Como quem desconhece a invenção dos óculos escuros, você transforma seus próprios olhos em armações, vidrados eles entram e persistem como lentes intransigentes. Não permite que ninguém penetre ou seja penetrado. A distância elétrica da sua resistência passa pela roleta e buscando uma janela para a qual se vira inflexível. Ingênuos os que pensam que você busca pelas paisagens batidas e desgrenhadas da estética urbana. Eu sei que deseja apenas evitar os outros passageiros. Eu te observo discretamente, com ternura e medo, pensando, quem sabe, um dia me aproximar.

Mas seu corpo todo repele qualquer presença, como se todos os abraços fossem feitos de espinho. Quem pode julgar, sem saber, quantos espinhos suportou pela vida? Quantos espinhos te torturam ainda a alma? A lembrança, o trauma. Eu não sei, mas eu sinto, apesar da sua distância, sinto suas nuvens, encharcando minhas penas. Todos os dias eu sei onde você começa a sua jornada, você, talvez, saiba onde a minha termina. Eu desço levando suas essências perturbadas e doloridas, um perfume doce e despretensioso de quem se conformou com o vazio.

Hoje, como por vezes a vida faz graça para interromper o mormaço monótono da rotina, quando eu desci, o transito estava parado. Pude te ver de fora. Seus olhos vidrados não me viam. Não estavam longe, não estavam atentos, pareciam completamente voltados por dentro, absorvidos pela introspecção. Quase não piscavam, como temessem assim liberar as lágrimas. Os lábios não estavam curvos em qualquer direção. Comprimiam-se em linha como quem segurasse o choro, aprisionando-o na tensão de todos os músculos da face. As sobrancelhas pareciam ignorar todos os sentimentos que no rosto se exibiam, como quem se cansou de se pressionar tanto.

Não era rude, era leve, toda a sua tensão, todo o seu descaso com os próprios afetos, vivendo os seus dias, um atrás do outro, fugindo de casa, ignorando as dores, ignorando a todos, ignorando a tudo, voltada para dentro. Levava nos ouvidos a música singular. Eu já percebia, mas hoje pude ver, nos seus olhos, eu vi as notas que chegavam egoístas apenas aos seus ouvidos. Ao contrário do motivo que, suponho, cole o seu rosto à janela antes que qualquer olhar possa encontrar o seu, a música poderia ser apenas para ocultar os ruídos externos, mas você realmente ouvia. Ou ouvia a si mesma como uma canção? Não importa tanto, desde que haja música, há esperança.

Eu sigo meu rumo, todos os dias, dia após dia, desde de o dia em que as suas nuvens pesaram minhas penas, e levo seu olhar descaradamente triste como um novo olhar rondando o meu. Quando chego ao trabalho e vejo os rostos sorridentes, os cumprimentos automáticos, as conversas de sempre, alguma polidez e alguma estupidez trocando farpas, disputando a atenção, eu busco em todos os olhos a verdade que os seus revelam sem pudor. Não é que todos carreguem uma tristeza como a sua, talvez não carreguem sequer tristeza alguma. Mas destes olhos seus, emoldurados do azul das noites mal dormidas, eu os vejo tão simplesmente sinceros, como quem cansou de fingir, e assumiu fugir de casa todos os dias. A sua fuga é o inevitável batente. É certo, não podemos parar sem maiores consequências. Estamos perdidos e seus olhos condenam essa perdição.

Então eu busco, um tanto cuidadoso para não ser descoberto em meu crime, busco os sentimentos mais profundos escondidos por trás de todos os olhos. Percebo que os olhos não são feitos apenas de íris e pupilas. Cada textura, cor, traço e expressão da pele que os cortinam, tudo diz respeito aos olhos. Mas, e os olhos, ao que dizem respeito? Nos olhos vivem caoticamente a verdade e a mentira de cada um. O inevitável do que se tenta evitar. Prestar atenção aos olhos alheios é desnudar ao outro sem permissão. Essa vulgaridade de conhecer sem pedir licença. O meu crime. Eu tenho mudado desde então.

Já não creio tão fácil no superficial que me apresentam. Suas nuvens pesando minhas penas me forçaram a fortalecer meus ossos ocos e finos para poder movimentar-me. Convivo com o desconforto de olhar nos olhos e perceber o quanto escondem. Há dores lá moça, há dores como a sua, muito mais bem protegidas. Há dores diversas. Há perversões e escuridão. Os sentimentos mais mesquinhos. Mas o que realmente me assusta é que há amor, há gentileza, há compaixão, há ternura. Tudo muito bem escondido também. Não importa o que escondam, escondem. As emoções bem guardadas, os desejos acorrentados. Quando se manifestam? Será que eles permitem vir o sono à noite, quando o silêncio profundo viabiliza os ruídos atormentados desses prisioneiros?

E então, como hoje eu te visse de frente pela primeira vez, através do vidro, sua fronte exposta em destaque com todos os demais em plano de fundo, como o ônibus fosse um quadro feito para destacar sua singularidade diante das sombras de perfil e costas ou rostos que mesmo de frente eram sombras, eu percebi, em débil reflexo, minha própria sombra. Quando encontrei um tempo para roubar da minha própria reserva, encarei o espelho. Tentei chegar nos meus próprios olhos. Tentei descobrir o que eles escondiam, ou se eram sinceros. Busquei desesperadamente ver. Eu me encarava angustiado, devorando todos os traços, texturas, cores e formas. Entrei em choque. Eu olhava e não via. No vidro do espelho o que eu via eram os seus olhos. Toda a sua face. A sua imagem e lembrança. As suas nuvens. A sua fuga.

Dessa interação unilateral que temos, eu levo seu olhar comigo. Não como uma bagagem, mas como um vírus. Algo que tomou parte e conta do meu corpo, da minha mente, me transforma cotidianamente. Transforma o meu próprio, antes que eu pudesse conhecê-lo, o meu olhar. É apenas o inevitável, pois se antes eu não via como eu vejo, não buscaria nunca os meus olhos como agora. Não teria os seus me impulsionando nessa busca.

Eu mentiria se dissesse que não sinto o desejo de aproximação e mentiria se dissesse que sinto. Estou tão completamente tolhido da compreensão do que desejo que me limito apenas a ver e sentir, o que seja, como é. De tudo isso que disse, dessa angústia sua permeando meu ser, espero apenas, desejo, isso eu sei, que um dia você possa dar descanso aos seus olhos. Fecha-los em definitivo para o peso que carregam e, então, abri-los novos para tudo o que há por vir, alguma leveza, e que assim, eles possam manifestar densamente, intensamente talvez, tantos outros afetos, com a mesma beleza com que hoje manifestam a tristeza.
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Eduardo escreveu essa carta no horário de trabalho para dar vazão ao insuportável dos pensamentos que lhe vieram desde que essa moça, dos olhos tristes, passou cotidianamente a embarcar no mesmo ônibus que o levava em seu trajeto. Cuidou em tecer manuscrita e legível cada palavra, dobrou o papel cuidadosamente e endereçou à moça da melhor forma que podia: “À moça dos olhos tristes, deste ponto de embarque”. Ele precisava especificar, porque sabia que haviam muitas moças de olhos tristes por aí. Mas ele queria que chegasse àquela.

Das intenções que o levavam a isso, poderiam ser um pouco egoístas, ou quem sabe, apenas nobres. Ele não queria violentar a tristeza da moça com frases fúteis de motivação. Nem a oferecer ajuda sem que ela pedisse, talvez sequer precisasse. Ele aceitava que a tristeza pudesse existir, como tantos outros afetos, apenas não deveria ser o único afeto… Uma questão de sobrevivência. De viver. Quis dizer isso a ela sem tentar mudar o que lhe ocorria sem a sua permissão. Respeitava o que via e admirava. Apenas. Respeito ou covardia?

Assombrado por seus dilemas, sem saber o que fazer, fez apenas o que dava conta. Escreveu as palavras e jogou o bilhete pela janela do ônibus quando retornava para a casa, no ponto em que a moça sempre embarcava. Esperava que ela encontrasse. Temia que ela encontrasse. É contraditório como somos, por tão descostumados com as iniciativas improváveis, que se a tomamos, não sabemos bem se gostaríamos que dessem certo por medo da reação, por medos das consequências. Confortava-o apenas a certeza de que aquilo que admirava nos olhos da moça não era a tristeza, mas a sinceridade com que se manifestavam.

Paula Peregrina

Peregrina de territórios abstratos, graduou-se em Psicologia, trocou o mestrado e uma potencial carreira por uma aventura na Letras e acabou forasteireando nas artes. Cruzando por uma vida de territórios insólitos, perseveram a escrita, a poesia e o olhar crítico, cristalino e estrangeiro de todos os lugares.

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