Comunicar-se é viajar, mesmo sem sair do lugar

Imagem de capa: Zev Hoover

Quando a comunicação não funciona, provavelmente, pelo menos uma das partes não está escutando, não está enxergando, não está sentindo. Na verdade, nesse processo de se relacionar com o outro, de se expressar plenamente, os ouvidos e a percepção valem mais do que uma boca cheia de sons.

É que não somos como os animais com rugidos programados para serem instintivamente compreendidos. Há muito mais do que fonemas e palavras entre dois corpos humanos. Os significados sempre se proliferam para além dos conceitos. Se comunicar com um desconhecido é como tentar se fazer entender em um lugar estrangeiro, onde mesmo quando sabemos a língua falada – e até mesmo quando falamos “a mesma língua” –, nosso vocabulário é cheio de “preconceitos”, nossa pronuncia é cheia de vícios, nos faltam as palavras certas e tendemos a rodear para chegar em um simples ponto. –E lugares às vezes são pessoas, como pessoas às vezes são lugares.

Nesse lugar de estrangeiro, é fácil visualizar aquilo que o cotidiano devora: o interesse pelo novo, por sua história, sua cultura, os diferentes pontos de vista; a abertura para ouvir e aprender outras formas de dizer, menos rígidas que a nossa limitada condição alienada do alheio; a atenção aos detalhes para guardar o gosto e o aprendizado de cada novo contato; o respeito polido de quem espera conhecer antes os limites outros para, somente depois, conquistar espaços com mérito: porque para o estrangeiro a imposição nunca funciona bem, é ele quem está “fora do lugar”.

Parece que toda essa magia de ser desconhecido em terra desconhecida, que concebe descobertas internas e externaliza paixões inimagináveis, ficou trancado na fantasia das viagens (turísticas). Essa crença pop virulenta de que a resposta para as descobertas, para a autodescoberta, para o novo, para sair da rotina, está limitada ao deslocamento material, literal, medido por quilômetros e registros filtrados sorridentes.

Porque é realmente mais fácil sair de lugar do que mudar o olhar, é mais fácil lidar com o exótico temporariamente do que viver a diferença integralmente. É mais fácil lidar com o sabidamente desconhecido do que assumir que desconhece o que, por alguma crença absurda, acreditamos religiosamente conhecer. É curioso como tanto do que encanta no passageiro espanta no permanente. – E pessoas às vezes são lugares, como lugares às vezes são pessoas.

Se conseguíssemos transpor para a vida esse espírito de aventura, de quem deseja descobrir o mundo, embora, na verdade, marque apenas alguns pontos turísticos em um mapa, perceberíamos que estamos rodeados de maravilhas. Quando nos damos conta de que cada indivíduo é um universo distinto, com vivências, sentidos, história, ilusões, rotinas, tudo tão diferente de nós, nos interessamos mais em perguntar e em conhecer do que em falar e impor.

Quando olhamos para a nossa própria cidade ou, ainda menos, nosso bairro, nossa casa, com atenção e consideração, corremos o risco de descobrir admirados que por ali há muito do que pode nos espantar – para o bem ou para mal. Podemos descobrir que, realmente, sair do lugar é melhor – não mais apenas pela sedução da onda viajante, pelo medo disfarçado de desinteresse em conhecer o que nos está no entorno, mas por sabermos que não somos dali, que nunca seremos dali, que nunca nos sentiremos à vontade.

É provável que mais descobrem e desfrutam dos seus trajetos aqueles que, ao menos, tentaram esgotar suas paradas e perceberam que é impossível esgotar um lugar, mas esgotar-se sim. E lugares às vezes são pessoas, como pessoas às vezes são lugares.

Ao confundirmos nossa velocidade limitada com a velocidade das descobertas tecnológicas, nos tornamos rasos e arrogantes, enxergando o mundo a partir dos nossos pequenos dramas cotidianos, sempre tão pessoais e tão importantes, que não paramos para olhar para o lado, para ouvir o outro lado.

Atacamos baseados nos nossos preconceitos e estereótipos pré-fabricados em plástico frágil, quebradiço. Porque antes de procurar conhecer, julgamos. Antes de observar, confirmamos o que o ponto de vista pronto já reservava no estoque. Então, é preciso mesmo ir para longe, para bem longe, para cada vez mais longe, mas, se enganam se pensam que é para sair do lugar: é para sair de si e conseguir olhar para fora. Talvez, apenas pela janela do carro, do trem, do ônibus, do avião, seja possível sair desse si mesmo tão denso, concretizando no ato o simbólico “olhar para fora”.

Não surpreende que em tempos de tanta facilidade e meios para se comunicar, a falta de comunicação seja um problema tão constante. As desculpas são frequentes. O silêncio é ainda mais. Ouvimos os ruídos externos já elaborando nosso próprio discurso. Observamos o outro pensando no que os gestos dele nos dizem sobre nós. Todo além do próprio corpo e do que ele reserva parece um obstáculo no qual ecoamos. A solidão é inevitável, ruidosa e superlotada –um cadáver fantasiado para o carnaval.

E não há saída, se não houver chegada: a comunicação só existe quando o interesse é recíproco. No máximo, quando nos damos conta do desinteresse do outro em nós e percebemos o excesso de interesse dele nele mesmo (através de nós), captamos a única mensagem efetiva do pacote – cheio de vazio. E pessoas às vezes são lugares, como lugares às vezes são pessoas.

Em hora dessas, resta olhar para o lado. Aquele lado que antes não foi visto, que não foi percebido. Sempre há um ponto de chegada. Quase nunca é o primeiro que a-parece. Somos lentos. Somos limitados. Damos um passo de cada vez. Enxergamos deformações organizadas em 180 graus. Enquanto nos desgastamos tentando escalar as muralhas de desentendimento que nos afrontam, com fugas esparsas para dar trégua à labuta e depois retomá-la,perdemos um balé de caminhos que convida nossos pés a serem estrangeiros sempre, vivento tudo como nunca, sentindo cada passo.

Convida nossos olhos a deixarem as janelas para os turistas e encararem face a face. Convida nossos ouvidos a tagarelarem interrogações e silêncios, para descobrirem o desconhecido no conhecido. Nômades da vida, acabamos por assumir que ser estrangeiro é condição de existir com tudo o que está fora de nós.

Paula Peregrina

Peregrina de territórios abstratos, graduou-se em Psicologia, trocou o mestrado e uma potencial carreira por uma aventura na Letras e acabou forasteireando nas artes. Cruzando por uma vida de territórios insólitos, perseveram a escrita, a poesia e o olhar crítico, cristalino e estrangeiro de todos os lugares.

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