Como sobrevivi a uma “pequena morte”

Quando a gente fala em um ano sabático ou em ficar sem trabalhar por um tempo, bate certo medo. A questão de sair do mercado de trabalho e não conseguir voltar é algo que aterroriza muita gente. O receio de perder o lugar, de comprovar que você é descartável, gera, no mínimo, um desconforto emocional. Eu percebo, também, que sentimentos similares circundam pessoas que estão prestes a se aposentar. Casualmente, nos últimos tempos, conversei com duas pessoas que vão se aposentar daqui a dois anos, e foi bastante interessante. Ambas mulheres, inteligentes e que tiveram uma vida bastante atribulada, cheia de compromissos, cuidando de filhos, trabalhando mais de oito horas por dia. Ambas estavam desconformes com a chegada da aposentadoria.

Na realidade, a conversa surgiu depois que comentei como era difícil trabalhar integralmente em casa. A falta de contato social mais intenso no cotidiano e a necessidade de administrar meu tempo, meu espaço, juntamente com minha vida pessoal, são, atualmente, desafios grandes para mim. Até esta experiência no Uruguai, eu não tinha tido um período de “calmaria” como adulta. A partir do momento em que entrei na faculdade, passava o dia fora de casa, trabalhando e estudando. Depois da faculdade, em meus empregos, sempre tive demandas mil, viagens a trabalho… O dia passava voando e os finais de semana eram repletos de coisas que precisava fazer, pois não tinha tido tempo durante a semana. Quem se identifica aí, levanta a mão!

A conversa que mais me marcou foi com uma senhora que conheci em um almoço na casa de amigos. Ela é estrangeira, diretora de um colégio renomado e quando me ouviu falar de minhas dificuldades de trabalhar em casa, comentou: “Hum, eu nem imagino como vai ser para mim quando eu me aposentar. Passar de um cotidiano cheio de atividades e em contato com pais, alunos…de repente…nada disso existirá mais”. Uma pessoa que ouviu esse desabafo em seguida lançou o maior clichê de todos: “Ah, mas você terá tempo para fazer tudo que sempre sonhou e que não podia”. A resposta dela foi tácita: “Mas, eu sempre fiz o que queria, não deixei tantas coisas para trás!”. E agora?

Domingo passado, vivenciei uma situação similar, só que desta vez com uma prima. Durante um almoço, ela fez um desabafo similar. Ela está cansada de trabalhar aos finais de semana, de ficar batendo ponto, negociando férias! Mas já pensou ficar sem ter trabalho? Sem sair de casa por obrigação, sem ver gente, sem interagir intensamente, sem compartilhar conhecimentos? Sem ser referência para alguém em nível profissional? De alguma forma eu pude ver nela o medo pelo que estava por vir. Era uma “pequena morte” que se aproximava.

Engana-se quem acha que somente vivencia-se isso às vésperas de uma aposentadoria. Está certo que, a partir de certa idade, o mercado de trabalho é bastante exigente com faixas etárias e em algumas realidades ser mais velho significa ser desnecessário e ultrapassado. São poucas as realidades que, hoje, encaram os mais velhos como pessoas mais sábias, vividas e fundamentais para a evolução da sociedade e a construção de novas gerações. Portanto, estou longe de menosprezar as dificuldades que envolvem esse momento na vida das pessoas. No entanto, consigo visualizar uma interface de conexão entre a aposentadoria e minha opção por trabalhar em casa: nas duas, você é confrontado por si mesmo. Nas duas você precisa lidar consigo sem tanto “bombardeio” externo. Em ambas surge a urgência em se redescobrir.

Quando eu optei por sair de um emprego formal, por mais que fosse uma decisão acertada no momento, fiquei apreensiva. O medo do desconhecido, do “isolamento” social. Eu estava me afastando de um padrão de trabalho e de vida que a maioria tem e que a maioria valida como “é a vida”, “é assim, precisa aceitar”. Inclusive, na época, cheguei a escrever um post falando sobre isso, pois algumas pessoas chegaram a me falar que eu estava sendo adolescente (imatura). Até hoje eu não entendo como alguém pode pensar que tomar essa atitude de vida possa ser algo imaturo, mas, enfim…não vem ao caso.  E  um ano e sete meses depois sabem o que eu descobri? Que aquela vida atribulada, cheia de horários, compromissos, sem espaços para vivenciar minhas reais necessidades estava me dominando, me doutrinando. Eu era uma executora de tarefas e achava que tinha algum tipo de controle. Era como se eu estivesse vivendo em um constante ruído. E somente hoje, depois de um ano e sete meses, é que eu percebo que esse ruído saiu de mim. Hoje eu consigo perceber o que sou e quem sou fora de um sistema que me mudava, que me afetava e me tornava alguém pior, mais estressado e menos feliz.  Sabe aquela sensação de acordar mal humorado mas não saber exatamente por que? Ficar irritado no trânsito. Brigar com um atendente no supermercado. Dar margens a picuinhas no dia-a-dia do trabalho. Sair correndo para almoçar. Sair voando para poder buscar o filho na escola. Tudo isso se foi. Hoje eu sou só eu, vivenciando minha vida sem a sobrecarga das coisas e dos outros, e consigo me perceber e perceber meu entorno com muito mais clareza, pela primeira vez na minha vida.

Se eu tenho saudades de conviver com meus colegas? Sim! Bastante, mais ainda por que éramos um grupo de trabalho sensacional. Mas, se eu me arrependo de ter feito essa opção? Não!  Com certeza e facilmente, se eu não tivesse pisado no freio, eu teria passado minha vida inteira nessa barulheira e só perceberia quando a minha aposentadoria chegasse. E aí, nessa hora, provavelmente viveria os mesmos dilemas das mulheres que mencionei. Me depararia com um vazio, com um “e agora?” enorme. E com a ilusão de que finalmente poderia me dedicar a tudo aquilo que não tive tempo.

Existem grandes chances que um dia eu volte a ter uma vida mais “normal” por opção. Afinal, quero ter novos desafios e voltar a ter um convívio mais intenso com pessoas, com um ambiente de trabalho, etc. Mas, uma coisa eu tenho certeza, não voltarei da mesma forma como eu saí. Algo mudou, uma consciência maior se estabeleceu. E de alguma forma, eu perdi o medo de perder meu lugar em um trabalho, eu perdi o medo de ficar fora do sistema, dessa vida que “precisa” ser vivida com ruído. Aos 35 anos acho que posso dizer que vivenciei essa “pequena morte” e percebi o quanto de vida existe em mim!

Melissa

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Engenheira, mãe e lutadora inveterada por uma vida mais plena e com mais sentido. Co-criadora do Vida Borbulhante. Largou tudo, deu um salto no vazio e foi morar no Uruguai com o Bruno e o Martin. Ela busca incentivar as pessoas a viverem uma vida com mais propósito.