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Carta de despedida para quando eu ficar

Quando eu ficar, despeça-se dos óculos de lentes coloridas. Não aqueles transparentes, para colorir e acalmar a vista num dia de sol. Você já teve, quando criança, um daqueles óculos feitos de cartolina ou papelão colorido, com uma imagem predefinida estampada em lugar das lentes? É desse tipo de óculos que estou falando… despeça-se deles, os deixe na infância, ou, ainda, use-os só de vez em quando, de brincadeira, para divertir-se com aquilo que sabe que não é real. Fora isso, tire-os, guarde-os para os momentos lúdicos, deixe-se ver-me viva, em movimento, em constante transformação.

E nas vezes em que eu engatilhar umas balas de desafeto apontando em sua direção, despeça-se dos escudos, cale minha ira com flores, é fácil, é certo, eu irei ceder, sempre preferi flores a armas. E essa ofensiva não passa às vezes de uma irreflexão mecânica, dessas que se ativam de tão acostumados estamos a ter que nos defender no percurso da vida. Sobrevivência, sim, mas, de quando em quando, somente uma digressão. Despeço-me das pontarias, das balas, dos gatilhos.

Sei que muitos admiram a qualidade de ter facilidade em partir, em abandonar, em desapegar-se, em estar sempre deixando para trás. Eles não sabem que para quem sempre parte, o fácil mesmo é se deixar ir e não ficar. Despeça-se dos enganos. Não chame de liberdade a fragilidade dos meus laços, que se tornaram escorregadios tomados pelo lodo dos contratempos. Despeça-se das falsas admirações, critique-me se necessário, mas por isso e não pelo contrário.

Quando eu hesitar em seguir em frente, para esse duvidoso progresso que só se sustenta na lei do rompimento com os conflitos, transforme em dança esse meu movimento de “vai não vai”, dê ritmo, deixe os atritos para os pés que se intercalam no chão, eu irei me abalar, eu irei me embalar, não sou feita de aço. Despeça-se da indecisão, deixe as palavras confusas transformarem-se em música, quando na dança se tornarem conscientes de sua insuficiência em comunicar algo que por si só faça sentido.

E se dissolvidos pelos percalços nos perdermos em palavras agressivas, desprovidas de razão ou emoções definidas, quando a desconfiança nos convencer em ceder a bárbaros ataques gratuitos, desfaça-se dos encontrões violentos, deixe que os corpos se encontrem em abraços, despeça-se das minhas palavras estúpidas, eu me despirei delas e também esquecerei das suas.

Quando eu ficar, mas me desviar com os olhos, simulando a ausência na minha presença integral tão imaturamente, pegue meu rosto com suas mãos, suavemente, minhas articulações não são tão rígidas quanto faço parecer. Coloque-me em direção ao seu rosto, insista para que eu te veja, para que olhe nos seus olhos, deixe que os nossos silêncios se resolvam.

Mas, se mesmo depois de tudo, partir for o que resta, pelos desígnios da vontade ou pela falta dessa, seja minha, seja a sua decisão – que no fim não há decisão dessas que se faça só, mas que só se faz pela impossibilidade do encontro dos desejos, que se faz pelo desencontro dos tempos – despeça-se. Despeça-se dos ares de indiferença e da rigidez dos movimentos, da distância forçada, do receio de um envolvimento que seja vão.

Já te contaram que a vida é feita de momentos? Talvez tenha descoberto por si mesmo, talvez essa desilusão sobre a eternidade tenha te atropelado com o carro desgovernado da realidade frágil da vida, que vai sem nem sempre dar a chance de uma despedida.

Não se engane dizendo que não existe algo do que se despedir, só porque uma vez te disseram, ou tantas vezes disseram que acabaram por lhe convencer, que algumas coisas são e outras não são. Pergunte a si mesmo, e provavelmente descobrirá que, embora não seja como deveria ser, ainda assim é.

Então, despeça-se, mesmo que seja para não saudar futuramente o remorso. Dê cores negras ao luto mesmo que ele agora não seja o seu. Despeça-se e tenha certeza, que é desses encontros e desencontros que é feita a vida, e por mais que tentem nos convencer que somos feitos para o orgulho, somos feitos para viver, para ir, para vir, para voltar, para amar sem fórmulas ou padrões.

Tenha certeza que ora somos pássaros, mas outras somos apenas uma pena à deriva na ventania.

Paula Peregrina

Peregrina de territórios abstratos, graduou-se em Psicologia, trocou o mestrado e uma potencial carreira por uma aventura na Letras e acabou forasteireando nas artes. Cruzando por uma vida de territórios insólitos, perseveram a escrita, a poesia e o olhar crítico, cristalino e estrangeiro de todos os lugares.

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