Por que uma brasileira largou tudo para divertir crianças refugiadas pelo mundo?

“Estão tão traumatizadas que mal conseguem brincar”, relata Alessandra Luiza de Morais, que deixou seu playground em Nova York para trabalhar em campo de refugiados na Grécia

A brasileira Alessandra Luiza de Morais, de 49 anos, se define como brincante. A profissão de Lele, como é conhecida, é justamente brincar com crianças de todas as idades. Mas nos últimos meses, se sua atividade seguiu sendo a mesma, o cenário e a situação dos meninos e meninas do outro lado do jogo mudaram drasticamente.

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Em uma semana, ela estava em Nova York, onde mora há 14 anos, com as várias crianças que participam do grupo de brincadeiras que ela mantém no quintal de sua casa ou em algum parque da cidade americana. Em outra, ela estava em um campo de refugiados na Grécia, brincando com crianças sírias que chegaram até lá de bote, depois de presenciarem todo tipo de atrocidades.”Elas já haviam perdido tudo. Não queria que perdessem também a infância.”

Com a ideia de ajudar crianças a continuar sendo crianças mesmo diante dessa situação, Lele criou o “Child Rescue Project”. Após uma campanha de financiamento coletivo, ela foi até o campo de refugiados de Eko para brincar com as crianças sírias – e arrancar umas risadas delas.

Antes de embarcar para inventar brincadeiras, dessa vez com refugiados na Áustria e provavelmente na Turquia, Lele conversou com a BBC Brasil sobre as surpresas (boas e ruins) de sua experiência e a luta para “garantir o direito de brincar às crianças de quem isso lhes foi roubado”.

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Como você foi parar na Grécia? Já tinha algum envolvimento com a causa dos refugiados?

Não, não tinha. Mas desde setembro do ano passado, quando comecei a ver fotos das crianças sírias mortas após se afogarem na travessia, passei a acompanhar essa crise, a coletar doações, a me envolver – especialmente com Calais (cidade na França que abriga campo, conhecido como “A Selva”, com imigrantes que tentam entrar na Inglaterra), que passou a abrigar mais e mais famílias. Fiz contatos e resolvi ir trabalhar com as crianças de lá, mas acabou não dando certo.

Por quê?

Porque o campo foi desativado e as famílias, inclusive as crianças que estavam sozinhas, foram expulsas, se dispersaram. Mas não mudei de planos. Por meio de uma ONG que conheci (a Lighthouse Release), decidir ir para o campo de Eko, no norte da Grécia.

Como você viabilizou a viagem?

Ia bancar tudo sozinha, mas uma amiga achou que poderíamos fazer um financiamento coletivo, especialmente para comprar material. Acabou sendo um sucesso. Pedimos US$ 3 mil, mas conseguimos mais que o dobro. Quando vi, pensei “Gente, tudo isso? Não vou dar conta de levar tanto brinquedo e giz” (risos). Mas foi lindo ver essa generosidade.

E chegando lá na Grécia?

Eu e uma amiga que foi comigo alugamos um carro e quando fomos chegando perto do acampamento, vimos um sinal luminoso. Eko era um posto. O acampamento era em um posto de gasolina. Foi meu primeiro choque.

Como você foi recebida?

Cheguei lá e fui conversar com dois espanhóis que já estavam trabalhando com as crianças, entre outras coisas. Eles chegavam lá, colocavam os brinquedos no chão numa espécie de tenda, e entrava uma manada de crianças. Segundos depois, elas começavam a disputar os brinquedos e a se bater.

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Por quê?

Essas crianças são incríveis, são uns amores, mas elas são uma panela de pressão. Nem tem como ser diferente, né? Tem tanta coisa por baixo, estão tão traumatizados, que mal conseguem brincar, qualquer coisa já saem na mão.

Como você reagiu?

Passei meu primeiro dia lá no campo controlando briga, tentando acalmá-los. Morri de tristeza. As crianças choravam o tempo todo. Os voluntários, que eram fantásticos, estavam exaustos, claro.

E depois desse dia meio traumático, como foi?

No dia seguinte, pedi para a Clara (a voluntária espanhola) para eu começar o dia e ela topou. Não sabia exatamente o que fazer, mas sabia que tinha de ser uma coisa amorosa, calma, para lidar com a energia desses meninos, algo alegre, mas sem ser explosivo. Então, fui pegando as crianças pela mão, duas por vez. Pegava, abraçava, beijava e levava para a dentro da tenda e falava de um jeito bem tranquilo para elas ficarem sentadinhas. Fizemos uma roda e peguei um livro de histórias e fui tirando umas mágicas do bolso. Foi dando certo… olhei para a Clara e ela estava chorando, nunca tinha visto os meninos tranquilos daquele jeito.

Não teve disputa por brinquedos?

Num primeiro momento, não teve brinquedo. Só depois fomos distribuindo, aos poucos. Levei alguns piões do Brasil e foi a coisa mais linda que aconteceu. Achei que ia ter de ensiná-los a jogar. Dei um giz para cada um ir pintando o seu e, quando olhei para trás, eles estavam todos jogando pião, brincando, rindo, numa alegria…

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Eles já conheciam pião?

Não fazia ideia disso, mas sim. Sem querer, conseguimos levar para eles a melhor memória que eles tinham do país deles. Uma memória que não tinha nada a ver com a guerra na Síria, tinha a ver com tempos felizes, era uma memória alegre. Eles estavam muito empolgados, fazendo algo que tinham aprendido na cidade, na escola, no quintal deles. Foi incrível. Não teve uma briga sequer. Fiquei muito emocionada. É incrível ver como a brincadeira une, acalma, põe a criança em contato com ela mesma.

Por que você achar que brincar é uma prioridade para essas crianças refugiadas?

Para elas é ainda mais urgente, porque elas perderam tudo o que tinham. Vivem a falta de tudo. Não têm casa, não têm o lugarzinho deles, a caixinha debaixo da cama. Por isso mesmo que é preciso dar continuidade à infância deles, reinventar o espaço da brincadeira mesmo em um lugar completamente adverso. Brincar é um direito deles. Tanta coisa já foi roubada deles. Isso não pode ser roubado também.

As brincadeiras também os ajudavam a esquecer um pouco da tragédia, não?

Sim, vendo eles brincar, a gente nem imagina pelo que passaram até ali. Nos intervalos, eu usava uma Polaroid que havia levado para fotografar as famílias. Um menino me levou até a tenda dele e só estava o pai. Perguntei da mãe. Ele apontou para o céu. Fiz um sinal com a mão, perguntando “como?” E ele fez um som com a boca; “bum!” Você engole seco, abraça a pessoa, demonstra todo o seu amor.

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Mas você conseguia se segurar?

Sabe, quando eu estava com as crianças, claro que eu eu ficava superemocionada com as histórias, mas não sentia vontade de chorar – mesmo nos momentos mais difíceis. Com as crianças, era como se eu fosse que nem elas. Só que à noite, quando ia pro hotel, chorava sem parar. Pensava que eu tinha uma cama, um banho quente… os meninos não tinham nada disso. Voltar para Nova York também foi difícil. Voltar para sua vida real, não ter mais como estar com as crianças.

E como ficou sua vida em Nova York, seu grupo de brincadeiras?

Resolvi desativar meu playgroup por pelo menos um ano, para me dedicar ao Child Project Refugee. Me dói muito porque faço isso desde que cheguei aqui, há 14 anos. Quando comecei, inclusive, meu inglês era igual ao deles, falava como uma criança de 3 anos (risos). Mas na Grécia me deu um click, porque pela primeira vez eu estava fazendo o que eu queria quando saí do Brasil: brincar com crianças do mundo, assegurar essa cultura da criança.

Quais os próximos destinos?

Neste mês, embarco para a Áustria, passarei algumas semanas com as crianças refugiadas de lá. Depois, devo ir para a Turquia e para Líbano. E também tenho projetos de brincar com crianças em situações delicadas, não necessariamente envolvendo guerra, como em um projeto que devo participar na Índia.

E a Grécia?

Eu mal posso acreditar, mas o campo Eko não existe mais. Os refugiados foram retirados de lá e levados para um campo militar, onde não podem cozinhar, não há escola e as condições são péssimas. E lá ONGs estrangeiras também costumam ser proibidas. Eu vi como funcionam esses campos quando visitei um assim no norte da Grécia (o campo de Alexandreia). Mas vou voltar para Grécia no segundo semestre.

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Você mantém contato com os refugiados que conheceu lá?

Sim, com alguns eu me comunico ainda, especialmente por WhatsApp, como com a família que ganhou um celular para a esposa falar com o marido, que estava na Alemanha. Uma mãe de cinco crianças, que atravessou sozinha da Síria até a Grécia. Nunca vi uma mãe naquele estado de esgotamento, me disse que não dormia, com medo de os meninos saírem da barraca no meio da noite.

O que você aprendeu no começo do projeto que vai repetir ou evitar nessa segunda fase?

Uma das coisas que quero repetir é o projeto de troca que fiz entre crianças de uma escola aqui de Nova York com crianças sírias. Umas fizeram desenhos para as outras – foi incrível. Agora quero fazer vídeos também. Porque quero mostrar para as crianças que todos são iguais. Aquela pessoa sofrendo é parte de você. Você não quer isso, porque vai sofrer também.

Quero manter esse contato entre elas, porque toda criança tem dentro dela a compaixão, tem senso de igualdade, de justiça. E vai perdendo quando cresce, quando passa a achar que ter um carro te faz melhor. Eu acho que esse intercâmbio de desenho ou vídeo mantém esse valor original que vive dentro das crianças. As mensagens eram lindas, com frases como “Vocês são as pessoas mais corajosas desse mundo, estamos orgulhosos…”

Você percebe diferença entre as crianças sírias, brasileiras, americanas?

Bem, o que eu percebi logo de cara quando cheguei aos Estados Unidos foi que as crianças daqui já tinham uma perda, não sabiam brincar sozinhas, não podiam pular corda, tudo era perigoso. Normalmente, as brincadeiras aqui têm de ter um propósito. Fiquei chocada quando um menino me contou que no pega-pega aqui, quem for pego tem que falar uma palavra com a letra que o pegador fala. Gente, o verdadeiro brincar não tem propósito. No meu grupo, eu só brinco, não fico querendo ensinar nada.

Mas em geral, meninos e meninas de todo o mundo são muito parecidos, porque a linguagem da criança é sempre o brincar. Sempre fico observando. Os meus professores sempre foram as crianças.

Fonte: Ultimo segundo







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