Por que não eu?

Oportunidades não são iguais para todos; sobretudo num país como o nosso, onde a equidade, além de ser um sonho distante, não é um desejo legítimo e unânime. Há muitos que, gozando de situação social privilegiada, não fazem questão alguma de modificá-la; outros tantos, sequer pensam a respeito. Há ainda, aqueles que já estiveram expostos às vicissitudes da vida, as mais diversas; mas, tendo conseguido acesso a condições melhores, esquecem-se de suas origens. Não nos esqueçamos, também, daqueles que embora empreguem inúmeros esforços, enfrentam dificuldades e privações. No entanto; e felizmente, há uma categoria de gente que, com muitos, poucos ou quase nenhum recurso, encontram jeito, tempo e lugar para doar-se. Exatamente! Doar-se! Porque para doar a si, não é necessário dispor de “coisas”; basta dispor de vontade e algum amor.

Um pouco de reflexão e de disposição para sair do “modo automático”, de repente, é capaz de abrir diante de nós um leque de descobertas inquietantes. As grandes tragédias, por exemplo. Somos apresentados, com alguma frequência a situações de catástrofe que, em sua magnitude, arrebatam vidas, destroem bens, desestruturam famílias. O choque da notícia, ao invadir nossa rotina, causa espanto, medo, comoção. Mas, com o passar dos dias, a tragédia do outro vai ocupando cada vez menos espaço na mídia e na nossa vida, sendo substituída por outras manchetes mais impactantes e ficando relegadas às gavetas do esquecimento.

Esquecer é nosso maior recurso de proteção. Esquecemos as dores sofridas, esquecemos amores perdidos, esquecemos dificuldades vividas. Caso não nos fosse concedida a bênção do esquecimento, enlouqueceríamos em pouquíssimo tempo. Por sorte, ou felicidade, os acontecimentos e pessoas mais extraordinárias de nossas vidas ficam guardadas com a prima mais amorosa do esquecimento, a memória. Guardamos na memória cantinhos de vida que nos tocaram, pela doçura, dureza ou sobressalto; guardamos pessoas que vieram morar dentro de nós, pela relevância ou delicadeza; guardamos tombos inesquecíveis, conquistas inolvidáveis, aprendizados indispensáveis.

Aprendemos que cabem a nós tarefas e missões das quais não podemos e nem devemos querer escapar. Aprendemos que o tempo, esse sábio senhor, guarda tudo em seu lugar, a depender de sua proporção e importância. Aprendemos que duas mãos unidas fazem do peso insuportável, um fardo possível de carregar. Aprendemos que as melhores coisas que podemos conquistar não podem ser guardadas em cofres. Aprendemos que sem frio na barriga a vida não passa de um carrossel enfadonho e previsível. Aprendemos que a nossa parte é tudo aquilo que honrarmos acolher, com coragem na alma, luz nos olhos e doçura no coração.

E, no decorrer do caminho, vamos tendo encontros felizes com pessoas intensas e admiráveis que, só por existirem já fazem brotar na gente o que de melhor podemos ser. Porque toda gente, tem em si um brilho que é só seu; um atributo único, feito para iluminar a vida com seu jeito de existir no mundo.

Há Pedros, Marianas e Sofias que, sendo ainda tão jovens, exibem em seu caráter, integridade, afetividade e coragem para abraçar carreiras, não apenas por seu retorno ou notoriedade, mas pelo compromisso que assumiram em fazer o outro sentir-se acolhido, protegido e respeitado; que fazem a gente ousar acreditar que o ser humano ainda é digno de confiança. Há Joãos de corações enormes, cujo maior objetivo na vida é cuidar de todos com desvelado carinho, sem distinção; cujo abraço imenso não escolhe a quem abrigar, socorrer e acalentar; cuja simplicidade desconcertante, guarda um homem íntegro, honesto e amoroso. Há Elianes, que são capazes de amar seus pais, com amor desmedido de mãe; que têm sempre um colo pronto para quem dele precisar; que ofertam sempre uma palavra boa para iluminar a gente por dentro; que são pura alegria, mesmo quando têm inúmeros motivos para estarem tristes. Há Marias que parecem nunca se cansar, não conhecer dificuldades e ter a capacidade de carregar no peito, como filhos, todo aqueles que a quiserem chamar de mãe; que são o lastro da família, o chão, o teto e as paredes desse lugar sagrado que chamamos de lar. Há Rosanas, Paulos e Mirians que amam, como se fossem seus, sobrinhos postiços que a vida trouxe de presente; que tem as mãos sempre firmes e prontas a acolher mais um irmão ou irmã; que são queridos e respeitados por sua retidão e generosidade. Há Beths que estão sempre prontas a nos ouvir; a guardar nossos segredos; a nos fazer ficar fortes, mesmo quando morremos de medo; que nos amam pelo que somos, sem nunca julgar os nossos erros, por mais assustadores que eles sejam. Há Rosas, que são puro amor; que acolhem o irmão sem teto, dando-lhe além do alimento físico, razões para acreditar que a vida ainda vale a pena; que se transformam em palhacinhas amorosas para levar sorrisos a rostinhos cuja alegria foi roubada pela doença. Há Ricardos e Rodrigos que tiveram o capricho de nascer juntos, no mesmo dia, no mesmo ventre; homens honrados e talentosos, com almas antigas e corações de menino; que são amados e admirados por sua genuína e imensa capacidade de amar.

Há, enfim, jeitos infinitos de transmutar esse mundo num lugar menos árido, mais possível e mais digno. Há inúmeras oportunidades, não de receber apenas. Mas de oferecer, de coração, alguma parte mais bonita de nós. Que os Pedros, Sofias, Joãos, Elianes, Marias, Rosanas, Paulos, Mirians, Beths, Ricardos e Rodrigos nos sirvam de estrela, a guiar nossa vontade, na direção do desejo de fazer diferente e diferença. E, se formos capazes de enxergar no outro a sua porção mais humana e iluminada, comecemos fazendo uma pequena parte hoje, mais uma amanhã, e depois, e depois. Pois essa pequena parte há de crescer, germinar e se espalhar. Assim, se a vida espera que tenhamos o atrevimento para assumir a difícil missão de subverter a ordem desigual, cabe perguntar, por fim: Por que não eu? – Por que não você? – Por que não nós?







"Ana Macarini é Psicopedagoga e Mestre em Disfunções de Leitura e Escrita. Acredita que todas as palavras têm vida e, exatamente por isso, possuem a capacidade mágica de serem ressignificadas a partir dos olhos de quem as lê!"