O importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora.

Alguns lugares permanecem vivos dentro da gente. independente do tempo em que vivemos neles. Sobrevivem ao tempo, às despedidas e desistências, às necessidades de se seguir em frente, ao desapego. Resistem como alicerces tão firmes quanto foram as lembranças, e mesmo sendo objetos, perduram repletos de memórias.

Não morei naquela casa, mas durante algum tempo foi o lar de meus pais. Antes do bilhete de despedida, era lá que passávamos os finais de semana, entre pães de queijo do sul de Minas e conversas na varanda, enquanto meu filho e sobrinho experimentavam as primeiras brincadeiras.

Era uma casa grande, centenária, tombada pelo patrimônio histórico, com janelões do tamanho de portas, e altura do teto a perder de vista. Uma casa bonita do interior que se destacava na descida da Matriz em direção à praça do coreto.

Ainda me lembro da última noite.

Já tinha fotografado seus cômodos e agora a estante da sala reinava vazia, restando apenas a televisão. Preferimos nos distrair da realidade e assistimos ao filme recém lançado de Arnaldo Jabor: “A Suprema felicidade”. De lá vinha a frase: ‘Nada é só bom”, e entendiamos que aquele momento era o nosso “não bom”, mas ainda assim seria revisitado muitas outras vezes, como um refúgio de lembranças e saudades.

Um ano depois, de férias pela região, esbarramos na casa aberta à visitação pública*. Era época de natal, e ali funcionava uma feirinha de artesanato comemorativa. Entrei de mãos dadas com o filhote e na cozinha chorei. Chorei não pela falta da casa, mas sim pela presença viva dela dentro de mim. Por enxergar minha mãe abrindo o forno e eu ajudando com a louça. Por ouvir a voz dos meus irmãos através da musiquinha natalina e imaginar momentos que não tiveram chance de existir. Por sentir vapores que só eu conhecia.

Vapores de vida, amor, nascimentos, despedidas, alegrias e tristezas.

Não havia mais nada de nosso lá. Ainda assim, aquelas paredes tinham tanto a dizer. Sabiam de um tempo nem sempre fiel ao que se esperava dele, mas um tempo bom.

A casa permanece à venda. Espero que os novos proprietários tenham sonhos, muitos deles, e que todos se realizem naqueles corredores e varandas. Que coloquem uma mesa grande na sala de jantar e discutam desde o preço da empadinha do Vadinho até os rumos da política atual. Que as crianças andem de patins pelos cômodos e façam uma sessão de cinema no tapete da sala. Se houver um casal, que saibam envelhecer juntos, e passeiem de mãos dadas pelas ruas da vizinhança. Que as flores do jasmim manga sejam colhidas no chão e oferecidas pelas crianças às suas mães. E que as paredes contem um pouco de nossa história àqueles que virão, para que cuidem com delicadeza daquilo que um dia quis ser parte de nossa eternidade.

Mia Couto tem razão. Já não importa mais a casa onde morei. Importa sim, a casa dentro de mim. Sabendo que vou me lapidando a partir do que existe, mas também daquilo que vivi e deixei partir. Entendendo que minha fachada não é somente o reboco visível, mas sim muitos outros alicerces imperceptíveis aos olhos. Descobrindo que também abrigo palavras não ditas, caminhos não escolhidos, sonhos não realizados. Aceitando a vida como ela é. cheia de acertos e imperfeições, percalços e contradições, desafios e realizações…

Imagem de capa: magda_shutterstock/shutterstock

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Escritora mineira de hábitos simples, é colecionadora de diários, álbuns de fotografia e cartas escritas à mão. Tem memória seletiva, adora dedicatórias em livros, curte marchinhas de carnaval antigas e lamenta não ter tido chance de ir a um show de Renato Russo. Casada há dezessete anos e mãe de um menino que está crescendo rápido demais, Fabíola gosta de café sem açúcar, doce de leite com queijo e livros com frases que merecem ser sublinhadas. “Anos incríveis” está entre suas séries preferidas, e acredita que mais vale uma toalha de mesa repleta de manchas após uma noite feliz do que guardanapos imaculadamente alvejados guardados no fundo de uma gaveta.