O consumismo da elite é desespero, por Flávio Gikovate

O psiquiatra Flávio Gikovate fala sobre as angústias da elite que frequenta seu consultório e o estresse do mundo moderno

Flávio Gikovate não tem um divã. Quando um paciente chega ao consultório dele, num dos endereços mais caros de São Paulo (a Rua Estados Unidos, nos Jardins), encontra primeiro uma fachada de cimento queimado com portas altas de correr. Depois, pode tomar café na recepção térrea, entre um jardim interno envidraçado e telas coloridas de Claudio Tozzi. Na hora da consulta, sobe por uma escada sem paredes laterais até a sala do psiquiatra e se senta: ou num sofá, ou numa poltrona bem confortável de couro preto. Mas divã, como no nome de seu programa semanal na rádio CBN (No Divã do Gikovate), não tem. “Sempre trabalhei assim, prefiro olho no olho”, diz. Talvez seja o olho no olho, talvez seja o método da “psicoterapia breve” e a promessa de alta em seis meses – que faz com que ele atenda 200 pacientes por ano. Fato é que Gikovate se tornou o confidente de alguns dos empresários e executivos mais bem-sucedidos do país. Nesta conversa, ele fala sobre a gastança dos brasileiros ricos, a cabeça do bom líder e outros temas atuais, mas de um ponto de vista diferente. Ou você já tinha ouvido que a culpa do consumismo é da pílula anticoncepcional?

Dinheiro anda comprando mais felicidade ou infelicidade?

Esses dias uma moça me perguntou se era possível ser feliz sendo pobre. Estudos de Harvard mostram que se faltar dinheiro para o básico – saúde, comida – provavelmente o indivíduo não consegue ser feliz. Algum para o supérfluo também é importante. Agora, de um ponto para cima, ele pode atrapalhar bastante. O consumismo é muito mais fonte de infelicidade do que de felicidade. O prazer trazido é efêmero, uma bolha de sabão – e em seguida vem outro desejo. Ele gera vaidade, inveja, uma série de emoções que estão longe de qualquer tipo de felicidade. E tudo vira comparação. Outro estudo diz que um indivíduo que ganha US$ 40 mil numa comunidade em que a média é de US$ 30 mil é mais feliz do que se ganhar US$ 100 mil e a média for de US$ 120 mil.

A elite brasileira é consumista demais?
Comecei a trabalhar em 1967, vi a chegada da pílula [anticoncepcional] e a emancipação sexual dos anos 60. Na época, achava-se que essa liberdade iria ‘adoçar’ as pessoas. ‘Faça amor, não faça guerra.’ Mas sexo e amor são coisas diferentes. É triste ver que os ideólogos daquela revolução estavam totalmente errados, porque a emancipação sexual aumentou a rivalidade entre os homens e entre as mulheres, foi criado um clima de competição, atiçou tudo que tinha de ruim no ser humano. Foi um agravador terrível do consumismo. Em países de Terceiro Mundo – e, intelectualmente, aqui é quase Quarto Mundo –, a elite só piorou nesse tempo. É uma elite medíocre, ignorante, esnobe. Na Europa e nos EUA, o exibicionismo da riqueza é muito menor. Na Europa, as pessoas consomem qualidade, não quantidade. Elas têm uma bolsa cara, mas não mil bolsas, para fazer disputa. Aqui há um comportamento subdesenvolvido e medíocre. E totalmente competitivo. As festas de casamento e de 15 anos são patéticas. A próxima festa tem de ser maior. Isso é sem fim. É sofrimento, é infelicidade. A quantidade e o volume com que as pessoas correm atrás dessas coisas é desespero.

Então o sexo é culpado pelo consumismo?
Desde o início, o erótico está acoplado ao consumismo. Nos anos 20, foi preciso introduzir novos produtos que não tinham a ver com necessidades, como o xampu. A ideia que tiveram foi acoplar um desejo natural a um desejo que se queria criar. Então botavam uma mulher gostosa para vender xampu. O consumismo sempre esteve relacionado ao erótico, não ao romântico. O romântico é o anticonsumismo. As boas relações amorosas levam as pessoas a uma tendência brutal ao menor consumismo. A verdadeira revolução, se vier, vai estar mais ligada ao amor do que ao sexo.


PAPO CABEÇA
Ele elogiou o livro O Amor nos Tempos do Capitalismo, de Eva Illouz, e os filmes Rush, sobre Niki Lauda, e Blue Jasmine, de Woody Allen


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9 mil pacientes atendidos, 1 milhão de livros vendidos e programa na CBN (Foto: João Mantovani)

Quais são outras fontes de angústia dessa elite que você atende?
Só para explicar: sempre fui bem [na carreira], faz pelo menos 30 anos que atendo algumas das pessoas mais bem-postas do país. Outro trabalho que sempre fiz foi por meio da mídia, em jornais, revistas e, há seis anos e meio, na CBN. É outra forma de ajudar as pessoas. Então tem dois mundos que eu atendo, o dos ricos e o do povo. E as diferenças são pequenas. São conflitos sentimentais, mais do que sexuais. Problema de família, briga de irmãos. Empresários têm muitos problemas de sucessão. O pai tem dificuldade de soltar a rédea e o filho tem a frustração de estar com 40 anos e não ter assumido os negócios. Outras vezes são problemas de ordem financeira, mesmo. O cara está indo mal, fica angustiado, tem os problemas familiares que derivam disso. Tem as tensões societárias… Empresa é complicado, quando vai bem tem problema, quando vai mal tem problema.

Por que trabalhar, no mundo moderno, é quase sempre tão estressante?
Estresse significa uma reação física para enfrentar situações de ameaça, portanto, quando o ser humano vivia na selva também tinha estresse. O estresse vem da ameaça, então numa empresa em que você é cobrado o tempo todo, vive com medo de ser demitido, você cria um clima muito mais grave de ameaça que o necessário. Estresse é ameaça. Sobrecarga cansa, mas não estressa.

Você às vezes se sente estressado?
Cansado. É diferente. Mas às vezes fico um pouco acelerado no pensamento, o que eu não gosto, porque empobrece a reflexão. Tenho a sensação de que o tempo ficou curto, de estar sempre devendo alguma coisa. Você se sente sempre em falta com um livro que não leu, um filme que não viu. Quando eu era moço, tinha cinco ou seis filmes importantes por ano para ver. Hoje, tem cinco filmes por mês. E bons!

Qual é uma boa válvula de escape desse mundo acelerado?
Um pouco mais de folga de horários, mais tempo para algum tipo de relaxamento. As prescrições passam por exercício físico, ioga e meditação – porque esvaziar a cabeça é certamente um grande redutor de ansiedade. Passam também pelo uso de medicação. Mas tudo isso são atenuadores. Se o trabalho fosse um pouco menos competitivo, seria possível abrir mão desses remédios.

Como um bom líder pode ajudar a reduzir as tensões no trabalho?
O bom líder é respeitado naturalmente, não por meio do medo. As pessoas reconhecem que ele está apto para o cargo e o exerce da forma mais democrática possível. Ou seja, antes de tomar uma decisão, consulta quem trabalha com ele, o que não significa terceirizar a decisão. O voto final é do líder, mas não sem ouvir todo mundo. A governança não pode se dar por atos irracionais, pelo humor do patrão. Deve se dar por normas que todo mundo conhece. Uma das maiores causas de estresse é ter um patrão cujo humor vai influir na forma como ele gere a empresa. Por isso a governança corporativa é importante, porque é um conjunto de normas que vai valer todo dia.

Você costuma ouvir: “meu chefe não me escuta”?
Todo mundo tem esse defeito [de não escutar]. O pai com o filho, o chefe com o subordinado… No caso do chefe, é mais comum porque chefe acha que sabe mais por definição, o que é uma grande bobagem. Um filósofo disse: humildade é a capacidade de aprender com quem sabe menos do que você. Ouvir alguém de verdade é estar disposto a abrir mão da sua ideia em favor da outra, se a outra for melhor que a sua. Boa ideia não tem dono. Toda boa ideia que eu ouço vira minha – e eu jogo fora minha velha ideia.

“Uma grande causa de estresse é ter um patrão cujo humor vai influir na gestão”

Que mudanças devemos ver daqui para a frente, em termos de comportamento?
As grandes transformações estão ligadas à mudança no papel da mulher. Na minha turma de faculdade, havia 78 homens e duas mulheres. Hoje, as faculdades têm em média 60% de mulheres. É porque os homens estão mais folgados e as mulheres, mais guerreiras. Mas isso vai dar numa série de desequilíbrios. Não sei se as mulheres vão gostar de sustentar os homens, nem se os homens vão gostar de ser sustentados. No ambiente de trabalho não tem problema nenhum, ao contrário, muitos empresários acham que as mulheres trabalham melhor. Mas em casa vai dar problema. Como faz para ter filho? Quem vai cuidar? Como vai terminar isso, ninguém sabe. A verificar. Mas não pense que é uma variável desprezível. A independência econômica da mulher desequilibra pra caramba o mundo.

Além do consultório, o senhor também foi bem-sucedido para vender livros?
Não tenho do que reclamar. Desde 1975, publiquei 32 livros e vendi mais de 1 milhão de cópias.

Qual o melhor?
Não sei. Minha mulher diz que é O Mal, o Bem e mais Além. É difícil falar. Gosto sempre dos mais recentes, mas no fundo são a reescritura daquilo que fiz nos anos 70 e 80.

E quando as pessoas muito ricas são felizes, o que costuma levar a isso?  
Os executivos que se sentem realizados são aqueles que gostam do que fazem. Às vezes, ficam até viciados. Mas a maior felicidade das pessoas ainda é quando conseguem estabelecer vínculos amorosos de qualidade. Tanto faz ser executivo ou não. É o que tem de mais importante. Gostar do que se faz e ter uma boa parceria sentimental talvez sejam as duas principais fontes de felicidade nesse nosso mundo.

Fonte: Época Negócios

Para mais informações sobre Flávio Gikovate
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