O caos é uma ordem por decifrar

“Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia.”

Albert Camus, o filósofo do absurdo, disse que a vida é a soma de todas as nossas escolhas. Essa constatação simples, mas até por isso genial, faz-nos pensar na relação que possuímos com a vida, no sentido de ação e possibilidade de ação na sucessividade dos atos que compõem a existência humana.

É evidente que possuímos controle sobre muitas coisas, bem como temos condições de melhorar a nossa capacidade de ser um sujeito que age sobre o mundo e o modifica. Entretanto, sobre muitas outras coisas não possuímos o mínimo controle, além do fato de que é na experiência que nos construímos enquanto ser, de tal maneira que, até que passemos por certas vivências, jamais saberemos, de fato, como elas são.

Diante disso, cria-se um paradoxo, afinal, somos seres finitos diante da infinitude do universo. Um universo repleto de possibilidades, em alguns aspectos, abundante, em muitos momentos, na mesma medida escasso, em tantas coisas, e, em tantos momentos, desacolhedor.

E, postos em face dessas paradoxalidades, dessas contradições, não sabemos bem o que fazer ou como agir. No entanto, sempre temos que escolher, que agir e adentrar por algum caminho, ainda que não saibamos a que lugar ele nos levará. A vida é um espetáculo sem ensaios, pois tudo que fazemos já representa a nossa própria vida.

Sendo assim, passa a existir em nós, dentro de cada um, um caos, com o qual nem sempre lidamos bem, já que tendemos a entender ou, mais precisamente, querer que a existência percorra um caminho retilíneo e contínuo, quando, na verdade, ela percorre caminhos sinuosos, para voltar, sair do caminho, esquadrinhar outros cursos, descobrir novos destinos, desistindo dos que outrora escolhera.

E faz isso porque somos finitos e não sabemos ou temos como saber de tudo, de forma que somos humanos, na medida em que fazemos escolhas e que escolhas nos fazem, em um universo imenso de contradição.

Contradição esta que aperta e tantas vezes amargura o peito, pois somos paralisados pelo medo. O medo daquilo que desconhecemos, do lado de fora, mas, principalmente, dentro de nós. Mas, se “O caos é uma ordem por decifrar”, como é inscrito no fictício livro dos contrários, por Saramago, então é preciso compreender que, a partir dessas incertezas e inseguranças existenciais, o que há de belo e mais humano no nosso ser passa a existir.

O que, em outras palavras, significa dizer que somos feitos desses contrários e que, portanto, não precisamos fugir ou maldizer, mas celebrar as nossas contradições, como bem fez Galeano, já que “dos medos nascem as coragens; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível e os delírios, outra razão”.

Em uma sociedade em que se pretende instituir em todos os corações uma racionalidade instrumental, torna-se ainda mais difícil sentir a ordem decifrável que o caos que somos canta em nossos ouvidos acostumados ao silêncio, ou a enxergar os lugares para os quais aponta, ante os nossos olhos sempre paralisados pelo medo.

É necessário que estejamos dispostos a mudar e, por conseguinte, a fazer novas escolhas, pois o nosso definitivo é sempre transitório. Todavia, não precisamos ficar assustados ou muito assustados, já que a memória sempre guarda o que merece ser salvo no quadro de delírios das nossas contradições.

Se “somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos”, é na mudança, nas travessias, nos começos, nos términos e nos recomeços, que a vida se coloca e que nós nos fazemos, pois “a identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia”.

Imagem da capa:  Sergey Nivens/shutterstock







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