“Nas quinas do quintal do mundo”, um conto de Nara Rúbia Ribeiro

Afirmo, dona Angita: o quintal do mundo tem quina. Ora, se até o Tempo tem dobradura! Acredita, não, senhora? Pois tem.

Quando caminhei de solavanco de sonho, já desditado de tudo, é que fui atinar para as quinas das coisas. Sabe, o céu tem quatro quinas. É verdade. É uma caixa de azul onde Deus quis por bem guardar a terra para que ela não saísse quicando no espaço. Essa caixa é brinquedo divino, é nela que Deus, toda noite, se diverte a colar e descolar as estrelas.
Mas não percebe, dona? Minha vida foi sempre tropeço, então, quando tropecei ainda ontem naquela quina do quintal do mundo, era mais um
desalento, era coração em Celestina. Aqueles olhos pretos me fizeram amar a noite, amar a tristeza, e me fizeram inexistir, sempre que ela se afastava, sorrateira, para amar, eu bem sei, outro alguém.
Mas ela sempre voltava, dona Angita. Quando ela voltava eu vivia de novo. Eu vivia era Celestina, morava em Celestina, meus pés bem pouco resvalavam no chão. Eu não ralhava, não exigia direitos; fingia não saber.
Habituei-me muito cedo a morrer. Quando conheci o amor de Celestina, aprendi que de amor é que mais se morre por dentro e que nada morre sem fim. A morte chega acabada, finda, parada de tudo. A vida é uma costura dessas mortes. E são tão infinitas essas mortes que a vida não termina nunca.
Quando a moça engravidou, pensei que não era perigo ela apontasse outro pai ao rebento. Eu, marido legítimo, seria o pai, fosse o pai quem o fosse. Mas fui ficando ressabiado. Ela amuou-se, ensimesmada, taciturneando silêncios. Ainda meditei “É mal de gestação”, vendo a sua barriga a cada dia mais redonda e o seu coração mais e mais distante.
Eu fazia os seus gostos. Comprava as comidas. Mandei fazer um berço de ferro, pintado todo ele de dourado, coisa mais linda! Mas Celestina nada se encantava. Tão diferente…
Quando conheci minha flor, logo me iluminou seu sorriso, sua saia curta, mostrando as coxas; seu caminhar de faceira, como quem brincava de chutar, quando em quando, um qualquer vento. Ela era toda um convite, meu corpo não meditava, aceitava, só aceitava. E assim passei a visitar mais vezes que necessário a mercearia da esquina, onde a menina era caixa, na ajuda do avô.
E eu, que já matutava na velhice dos dias, já aos sessenta e tal, virava menino de novo e dava sempre jeito de fugir com Celestina, nem que fosse uns minutos. Ela era jovem demais, eu sei, pouco mais de 16, mas sabia amar com ninguém. Bastava olhar a boca entreaberta da moça e o meu corpo, todo o corpo, obedecia o coração. Não se pode dizer não quando cada espacinho de nada do corpo sussurra desejos assim.
E a gente fugia, cada hora a um lugar diferente, para que o corpo cumprisse a sina de amante. Assim se deu por semanas, até que o avô da menina atinou nas suas fugas. Foi assim que providenciei o casório. Logo eu, que nunca fui disso, que sempre quis viver solto no mundo, agora assim, já velho e todo bobo, no aguardo do casamento.
Noite mais linda! Celestina de branco, eu todo afoito, com medo que tudo fosse sonho e um infeliz desalmado me acordasse. Mas não era. Daquele dia em diante, eu, Zé Filício, fui o dono do céu.
Vi que até o céu tem coisa errada. Celestina era minha, mas era ainda de outros tantos. Mas que importa, desde que fosse minha?
Quando a barriga foi crescendo, começou a renegar meus carinhos. Não me olhava nos olhos, não me alisava na cama. Dizia: “Coisa de grávida, Zé, deixa eu quieta aqui no meu canto.” Eu deixava, mas sempre me desabava no chão um pedacinho de mim.
Naquele dia acordei, dona Angita, e não vi Celestina. Meu coração deu sinal de perigo. Eu velho, acabrunhado, doido de amor, sai aloucado, a procura da moça. E onde teria ido com aquele ventre tão crescido e pesado? Roguei a graça de Deus e dos santos todos, mas nada de Celestina. Depois de três dias encontrei um papel amassado caído embaixo da cama:
“Não me apetece ser mãe. O filho é bem seu e o meu amor também é. Zé, a vida é embaraço dos grandes e não quero sentar e desfazer os nós. Vou me jogar no rio antes mesmo do nascer do sol.”
Mas a Vila não tinha rio, dona Angita. Poderia a minha mulher se afogar num leito de inexistência? Só tem um rego d’água que mal molha as canelas da gente. E ela não tinha como sair da vila sem condução, ainda mais com aquela barriga de enormidade.
Foi então que sai correndo naquele quintal esquecido do mundo. Eu não sei se desconhecia que o quintal do mundo tem quina, ou se havia disso me
esquecido, e tropecei. Disseram que tomei veneno. Disso nem precisava, mais se morre de ingestão de tristeza.
Não sei como cheguei aqui, dona Angita. Essa camisa branca amarrada, essa tanta gente de branco, tudo é um engano sem tamanho. Preciso procurar Celestina. Ela deve andar embaixo da água de algum rio desse mundo, procurando alguma alegria que seja. Talvez meu menino já tenha nascido e segure a mão dela. Sabe, dona Angita, olharam meus documentos. Disseram que eu nunca fui casado, que Celestina nunca existiu, que ela é toda feita de loucura. Que ignorância, dona Angita! É que eles não se celestaram ainda. Só quem conhece o céu é que tudo sabe.

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Foto: Joilson Kariri

Nara Rúbia Ribeiro: colunista CONTI outra

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Escritora, advogada e professora universitária.
Administradora da página oficial do escritor moçambicano Mia Couto.
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