Julieta – A complexidade desconcertante das mulheres de Almodóvar

Com paisagens, cenários, diálogos e silêncios de tirar o fôlego, Julieta de Almodóvar tem a rara capacidade de nos atingir lá naquele espacinho íntimo feminino. O filme conversa conosco numa linguagem que desperta a perturbadora certeza de que, sendo mulheres, somos mães alucinadas pela segurança dos filhos; irmãs e amigas num ponto de fusão entre intimidade e competição; filhas rebeldes, amorosas e indecifráveis; o lastro familiar que agrega valores e crenças; a vadia cega pela satisfação de seu prazer, custe o que custar.

Tudo isso, num caldo emocional que desorganiza a gente por dentro, dada a intensidade dos sentimentos tão controversos que compõem a ilógica lógica feminina. Julieta, assim como Antía – a filha, Ava – a amiga e rival, Marian – a protetora e algoz, Beatriz – a luz afetiva e a sombra do distanciamento, entrelaçam suas vidas numa intrincada trama que se desenrola e traz à tona experiências de amor, desamor, raiva, inveja, rupturas, coragem, medo, perdas, reencontros e redenção.

O fio condutor, uma carta escrita pela mãe à filha ausente, afastada em um autoexílio, cujo objetivo é purgar a dor partilhada em silêncio e libertar-se de anos de coisas que deixaram de ser ditas, sentimentos engolidos a seco e mágoas que de tão negadas, viraram pedra no peito, onde antes havia amor.

O vigésimo filme da riquíssima carreira de Almodóvar como cineasta, encarna um drama, segundo o próprio autor, sobre mulheres “imperfeitas, mas defensáveis, como são vocês, como somos todos”. O elenco, em sua maioria, vive pela primeira vez a experiência de trabalhar com Almodóvar. A ideia de escrever essa história vem de 2009, quando o cineasta comprou os contos Destino e Silêncio, de Alice Munro – escritora sueca e ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura.

Dos textos originais de Munro, Almodóvar conservou apenas uma sequência de cenas que se desenrolam no vagão de um trem. Lá fora, ventos fortíssimos e a noite escura e fria; dentro do trem, encontros intensos, cujas consequências reverberarão em flashes, ao longo de toda a trama.

A história é rica em sentimentos que parecem prontos a explodir, mas são contidos às custas de um abatimento que invade as personagens femininas, fazendo-as estampar nos olhos aquele sentimento diluído e denso que fica depois de uma dor aguda. Não há choros libertadores, apenas lágrimas ardidas que não ousam ir além de um traço fino desenhado no rosto.

Julieta, é desses filmes que não podemos nos privar de ver; que vamos querer rever, na ânsia de termos perdido algum detalhe, posto que estivemos o tempo todo imersos e arrebatados, vivendo junto com os personagens na tela. É dessas experiências que nos fazem olhar para nossas próprias relações em busca de algum nó que precisa ser desfeito, de algum canto da vida que precisa ser revisitado e de algum silêncio que precisa ser quebrado para nos devolver a voz.







"Ana Macarini é Psicopedagoga e Mestre em Disfunções de Leitura e Escrita. Acredita que todas as palavras têm vida e, exatamente por isso, possuem a capacidade mágica de serem ressignificadas a partir dos olhos de quem as lê!"