Histeria, a luta antimanicomial e o feminismo

Por Nanda

Não é de hoje que mulheres têm seus corpos e sentimentos demonizados. Desde muito antes da Idade Média, onde mulheres sofreram perseguição, mutilação de seus órgãos e foram encarceradas por seus comportamentos, o sentimento feminino foi considerado um problema a ser resolvido.

Se uma mulher sangrasse, era considerada bruxa e queimada na fogueira durante a Inquisição porque não estava cumprindo com sua função reprodutiva. Se não obedecia seu marido ou se sentia prazer durante relações sexuais, também era queimada, jogada em uma cela e isolada completamente da sociedade, ou sofria diversas formas de tortura.

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A concepção da histeria surgiu muito antes dos relatos de Hipócrates (IV a.C), e através dela é possível perceber a relação que se tem com o conceito de mulher nessas sociedades e o papel que elas tinham.

Além da histeria ser considerada uma doença das mulheres, as parteiras eram as responsáveis pelo tratamento e cura. A doença era associada diretamente ao útero, que eles acreditavam ter o poder de se movimentar dentro do corpo de maneira autônoma, causando a sufocação daquilo que eles entendiam como matriz. O tratamento se dava através da manipulação desse órgão.

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Imagem do filme ‘Histeria – A história do Vibrador’ que mostra o tratamento recomendado à mulheres consideradas histéricas no século XIX.

A visão do papel da mulher na sociedade não se alterou com o tempo, e com isso foi possível perceber como caminhou a história da loucura feminina e a patologização do sentimento da mulher. Eram consideradas histéricas as mulheres que não cumpriam com a sua função de reproduzir e cuidar do outro.

O diagnóstico de histeria era frequentemente usado para demonizar e invalidar manifestações emocionais. Estas, eram entendidas como comportamentos anormais e indesejados por parte das mulheres. No entanto, para os homens, eram vistos como comportamento característico e completamente aceitável, já que a “responsabilidade” de parir, ser submissa e pacífica ficava para a mulher.

A raiva, o medo, a desobediência e a sexualidade da mulher eram considerados comportamentos histéricos que precisavam ser corrigidos.

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“Com quantos homens eu tenho que dormir para ser considerada promíscua?”

A forma de enxergar as emoções das mulheres durante séculos (o que não se alterou, diga-se de passagem) foi justificativa para as mais diversas violências, como foi visto dentro de manicômios e através dos tratamentos de histeria (como extirpação do útero, a invenção do vibrador, etc).

No filme Garota Interrompida, é possível perceber como eram os tratamentos dentro dos ambientes hospitalares voltados pra saúde mental e em como os comportamentos tidos como dissonantes das características femininas, eram vistos.

A loucura feminina por diversas vezes esteve intimamente relacionada com a feminilidade e a corporalidade da mulher.

Os manicômios surgiram como uma forma de encarceramento e higienização das ruas. Era uma instituição que tinha como proposta isolar da sociedade todo e qualquer indivíduo que não se encaixava nas normas vigentes daquilo que era considerado normal ou produtivo.

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Hospital Colônia de Barbacena

O termo manicômio surge por volta do século XIX e designa especificamente as instituições responsáveis por tratar da loucura. Segundo Foucault, o hábito de retirar indivíduos de meios sociais e isolá-los surgiu com os árabes e data o século VII, onde surgiu o primeiro manicômio conhecido.

Mulheres foram internadas, muitas vezes, por não corresponderem aos estereótipos ligados ao gênero ou por não se encaixarem dentro daquilo que a sociedade esperava delas.

Lésbicas, mães solteiras, mulheres negras, pobres, mulheres que gostavam de sexo, mulheres tidas como frígidas, mulheres divorciadas ou viuvas, todas aquelas tidas como subversivas, foram inúmeras as justificativas para a internação compulsória e o isolamento de todas elas. O manicômio era uma punição para o comportamento tido como inadequado, e o responsável por diversos traumas.

O documentário “Em nome da razão” mostra como funcionava o manicômio de Barbacena, e denunciava os maus tratos que ocorriam.

Dentro desses ambientes aconteciam diversas práticas violentas sobre a alcunha de tratar e curar doenças mentais, que por diversas vezes, nada mais eram do que o rompimento com o papel esperado pela sociedade.

Banhos frios, abusos sexuais por parte dos cuidadores, agressões físicas e verbais, lobotomia, isolamento completo, privação do sono, falta de alimento e experiências médicas eram acontecimentos comuns dentro dessas instituições. Muitas mulheres nasceram e morreram dentro dessas verdadeiras prisões.

O filme O bicho de sete cabeças se tornou referência ao falar sobre a questão da luta antimanicomial e os abusos cometidos dentro dessas instituições.

Mulheres foram submetidas constantemente a essas torturas com aprovação de suas famílias numa forma de punir e tentar ‘consertar’ o comportamento considerado inadequado. Muitas foram abandonadas dentro dessas instituições, engravidaram, tiveram seus filhos e morreram sozinhas.

“Sucker Punch”, o filme de Zack Snyder, mistura ficção e realidade e retrata os abusos cometidos dentro dos manicômios e em como mulheres eram internadas por suas famílias para corrigir comportamentos indesejados.

Outro exemplo é a temporada “Asylum”, de American Horror Story onde uma jornalista lésbica é internada para impedir que ela denunciasse os abusos e experiências médicas que aconteciam dentro do hospital psiquiatrico.

Foi com Basaglia que se iniciou o movimento de humanização no tratamento de pessoas com transtornos mentais e a crítica aos ambientes manicomiais. Ele era combativo à psiquiatria clássica por acreditar que o isolamento hospitalar como tratamento era exclusivo, repressor e higienizador. É com ele que se inicia o movimento de abolição de hospitais psiquiátricos como forma de tratamento da loucura.

A luta antimanicomial surge então, como um questionamento e uma proposta de visão da loucura e de seu tratamento de forma mais humanizada, voltada à reinserção do indivíduo na sociedade, na sua autonomia e na desinstitucionalização do cuidado.

Como alternativa aos manicômios, foram criadas os centros de atenção psicossocial (CAPS), que atualmente atuam de maneira precária por conta da mercantilização da saúde.
É importante entender que a luta antimanicomial também é uma luta feminista, já que historicamente tivemos nossos corpos e sentimentos invalidados, patologizados.

Ao pensar na questão da saúde mental da mulher, podemos perceber que muitos dos transtornos manifestados são diretamente associados a questões biológicas, esquecendo do fator social, como as jornadas duplas, a maternidade compulsória, abusos sexuais e psicológicos, péssimas condições de trabalho, entre outros. Muito do que é tido como um transtorno tem relação direta com a sociedade que vivemos.

Fazer parte do movimento antimanicomial é também questionar o entendimento sobre a loucura, a forma de tratamento, e o histórico da loucura feminina e a construção do saber em relação à saúde mental da mulher.

Mulheres foram institucionalizadas apenas por serem mulheres e por não se adequarem ao papel que foi designado à elas. Essa luta também é nossa.

Questionar e compreender os aspectos relacionados à loucura, seus tratamentos e a instituição manicomial, também é inquirir/indagar sobre a concepção dos transtornos mentais que atingem, em sua maioria, a mulher, na patologização de seus sentimentos e ao apoderamento de seus corpos.

Vou compartilhar com vocês as referências que usei para a construção desse texto, pra quem tiver curiosidade de ler mais sobre o assunto. Para acessá-los, é só clicar nos links abaixo:

Texto 1 | Texto 2 | Texto 3 | Texto 4 | Texto 5 | Texto 6 | Texto 7 | Texto 8 | Texto 9 | Texto 10

Você pode assistir aos filmes clicando nos links.

Em nome da razão | Bicho de sete cabeças | Estamira

O CONTI outra agradece a autora pela autorização da publicação nesse espaço.

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Apenas uma jovem jedi aprendendo a ler mentes. Se eu fosse uma x-men eu com certeza seria a Mistica. Chá maniaca, dançarina do tchan e ninja nas horas vagas, também sou maratonista oficial de séries. Welcome to the femininja side of the force. Leia mais artigos da autora no blog Womansplaining







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