George Orwell: a linguagem como construção de poder

O que são verdades? Nietzsche dizia que as verdades são construídas por meio da linguagem e do esquecimento. Sendo assim, a linguagem e, por conseguinte, as informações proferidas pela linguagem, configuram enorme importância no erigimento das bases que estruturam o convívio social.

Essa problemática é trabalhada com perfeição por George Orwell nas suas obras “A Revolução dos Bichos” e “1984”.

Em “A Revolução dos Bichos”, os animais de uma determinada fazenda – “Granja Solar” – através de uma revolução conseguem se livrar do domínio humano, personalizado na figura do Senhor Jones. Após o processo revolucionário e a tomada do poder, os porcos passam a liderar o movimento, uma vez que se consideram os animais mais inteligentes e, portanto, mais capazes de liderar a revolução e o controle da fazenda, ainda que eles coloquem, perante o resto dos animais, a liderança como uma atividade muito dispendiosa, a qual, eles humildemente estão dispostos a executar, em uma espécie de sacrifício para com os demais animais.

Ou seja, desde logo, o uso da linguagem e da informação são utilizadas como um forte instrumento político-social, já que é sabido que os porcos preocupavam-se tão somente em possuir o poder e tirar proveito deste para a sua “classe”. Desse modo, o controle da linguagem e da informação por um determinado grupo, faz com que este distorça estas de acordo com o seu interesse.

Ao longo da história isso é perceptível claramente na manipulação dos mandamentos, que mudam sistematicamente conforme os desígnios dos porcos se modificam e estes vão se “humanizando”.

“Porém, alguns dias mais tarde, Maricota, lendo os Sete Mandamentos, notou que havia outro mandamento mal recordado pelos animais. Todos pensavam que o Quinto Mandamento era “Nenhum animal beberá álcool”, mas haviam esquecido duas palavras. Na realidade, o Mandamento dizia: ‘Nenhum animal beberá álcool em excesso’.”.

Outro elemento utilizado na construção das bases que mantêm a ordem estabelecida é o uso das estatísticas. Por mais que a situação aparente estar tão dura ou pior que na época do Senhor Jones, os porcos sempre tratam de apresentar estatísticas que “comprovam” que as condições são melhores, haja vista o “aumento” constante na ração e a “diminuição” das horas de trabalho.

Esse elemento, o qual também é utilizado em “1984”, tem o seu sucesso estruturado em função da ideia de Nietzsche, posto que submetidos a uma realidade imposta e manipulada, perde-se até mesmo a noção de tempo, em que o esquecimento age como determinante na construção das novas verdades. Não à toa, um dos lemas do Partido em “1984” é:

“Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado.”

No entanto, os absurdos produzidos pelos detentores do poder podem algumas vezes tornar-se alvos de questionamento pelos dominados. Quando isso acontece, faz-se necessário alterar a percepção interna para a externa, criando-se a figura do inimigo que quer destruir a ordem posta. Em “A Revolução dos Bichos” esse inimigo é inicialmente colocado na figura do Senhor Jones, o humano, de modo que a cada questionamento acerca do sistema, liga-se o alarme do medo dos tempos sombrios da submissão aos homens.

“Sabeis o que sucederia se os porcos falhassem em sua missão? Jones Voltaria! […] não há dentre vós quem queira a volta de Jones. Ora, se algo havia sobre o que todos os animais estavam de acordo, era o fato de nenhuma desejar a volta de Jones. […] Foi, portanto, resolvido sem mais discussões que o leite e as maçãs caídas (bem como toda colheita de maçãs, quando amadurecessem) seriam reservadas para os porcos.”

Posteriormente, o inimigo externo tornou-se um animal, antes integrante da revolução, “Bola de Neve”, o qual deveria ser combatido por todos de forma ininterrupta. Em “1984” esse inimigo aparece na figura de “Goldstein”, antigo membro do Partido, e agora líder das guerrilhas que pretendem destruí-lo e, consequentemente, o povo da Oceania. A fim de sempre reavivar a persona do inimigo, instauram-se os “Dois minutos de ódio” destinados ao ataque de todos à imagem de Goldstein que aparecia nas tele-telas.

Dessa maneira, a construção do inimigo externo e, conseguintemente, do ódio destinado a este, exerce fator determinante na manutenção do establishment, uma vez que se quebra a possibilidade de subversão e a classe dominada é mantida sob forte alienação e ignorância.

A despeito disso, o fator primordial que possibilita a execução das vontades dos Porcos e do Partido consiste na ignorância a que os indivíduos/bichos são mantidos. Nos dois mundos, poucos possuem um nível intelectual mais avançado, sendo que a maioria, no caso de “A Revolução dos Bichos”, sequer sabe ler, o que, diga-se de passagem, é determinante na manipulação que é exercida nas informações.

“Nenhum dos outros animais da granja chegou além da letra A. Notou-se também que os mais estúpidos, tais como as ovelhas, as galinhas e os patos, eram incapazes de aprender de cor os Sete Mandamentos. Depois de muito pensar, Bola de Neve declarou que, na verdade, os Sete Mandamentos podiam ser condensador numa uma única máxima, que era: ‘Quatro pernas bom, duas pernas ruim’.”.

Sendo assim, a ignorância, o ódio, o medo e a alienação, tornam-se faces de uma mesma moeda, de modo que os detentores de maiores recursos, não só financeiros, mas intelectuais e técnicos, conseguem facilmente manipular a linguagem, as informações, a história e o próprio povo. Tudo é ressignificado constantemente para que a “Ordem e o Progresso” sejam mantidos, e, assim, Mandamentos sejam reescritos, a novilíngua seja instaurada e o pensamento mantenha-se confuso e restrito. Isto é, para que a massa por meio da linguagem, instrumento indispensável à liberdade, tenha a sua própria linguagem e, consequentemente, liberdade, controladas.

Em um mundo em que as realidades apresentadas estão cada vez mais presentes, torna-se indispensável fazer do instrumento de cerceamento, a chave da libertação, sendo um verdadeiro inimigo do Partido e dos Porcos (pleonasmo?), sendo um verdadeiro libertário, sendo corajoso para quebrar as regras da polícia do pensamento ou para lutar contra os cães de Napoleão e, acima de tudo, sendo “louco” o bastante para ser um “criminoso” de ideias, porque se há algo que pode quebrar a estrutura, esse algo está dentro de nós.







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