Fugidinhas


De vez em quando escapo da atmosfera da minha própria vida. Fujo sorrateira para tempos onde já estive ou ouso inventar. De vez em quando sumo da minha realidade para viver outros mundos.

Parece loucura, mas faz parte do processo de existir permitir que fantasias se somem à nossa realidade como parte do que somos também. Talvez isso nos torne pessoas menos enrijecidas, mais suaves e felizes.

Alguns dias são mais puxados que outros. Aquela segunda feira, que desperta amarga e confirma que a semana não trará ventos de simplicidade, também pode ser invadida, se você permitir, por pensamentos soltos, sonhos de felicidade, desejos de superficialidade.

Eu preciso pensar no oceano azul esverdeado das últimas férias enquanto instrumento o canal atrésico do meu paciente _ é a única forma de não perder o bom humor diante da árdua tarefa que tenho à minha frente.

Também gosto de saber da fofoca envolvendo Ben Affeck, a babá e Tom Brady; porque, de alguma forma que não sei dizer, isso me ajuda a esquecer um pouco que o Brasil vai mal das pernas, que o Real está cada dia pior, e que a inflação bate à nossa porta com vontade de ficar.

Preciso de um pouco de superficialidade; de descobrir que formato de sobrancelha fica bem num rosto como o meu, ou que tom de base é perfeito para minha pele. Por mais fútil que pareça, essas fugidinhas me ajudam a enfrentar a noção de que o mundo é um lugar injusto, de que milhões de pessoas passam fome, de que muita gente acorda antes das quatro na manhã pra ir trabalhar, de que sou impotente perante a maioria das misérias do mundo.

É preciso dar uma fugidinha de vez em quando. Respirar fundo e mergulhar na alegria que carregamos em pequenas frações dentro de nós. Abrir um a um os diminutos frascos de boas lembranças e permitir que eles exalem calmaria e bem estar na realidade que vivemos. Realidade nem sempre fácil de experimentar e assimilar.

De vez em quando tudo o que a gente quer é pensar num sapato novo, numa bolsa bacana, numa unha pintada de vermelho-Gabriela. São nossas fugidinhas corriqueiras, pequenos agradinhos à alma e ao pensamento.

Meu local de trabalho não é um lugar solar. É sombrio, tem os corredores abarrotados de gente carente e doente, com deficiências no corpo e na alma; as paredes são frias e a beleza, escassa. Para não pirar, aprendi a me resguardar desviando o foco. Quem sabe ouvindo a música do Marcelo Jeneci _ “Temporal” _ cuja melodia me deixa instantaneamente feliz; talvez escrevendo entre um paciente e outro; eventualmente fazendo uma leitura rápida na internet. São pequenices que ajudam a apaziguar a visão da fragilidade humana, e amenizar a impotência diante do sofrimento alheio.

Como eu disse, Marcelo Jeneci e seu “Temporal” tem feito meus dias mais felizes. A melodia é doce, e a letra diz assim:
“O que tem começo, tem meio e fim
Deixa passar o dia ruim
Que a tempestade resolve com Deus…”

Talvez seja isso. Acreditar que mesmo que nem todo dia seja bom, ele passa. Passa e leva embora os tropeços, as sensações ruins, as faltas e falhas. Passa e nos ensina a buscar soluções para superar o que não pode ser modificado, aceitar o que não pode ser consertado, acolher o que não consegue ser remediado. Passa e nos mostra como seguir em frente deixando o pensamento fluir nos momentos em que a vida fica difícil de digerir…

Imagem de capa: Antonio Guillem/shutterstock

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Escritora mineira de hábitos simples, é colecionadora de diários, álbuns de fotografia e cartas escritas à mão. Tem memória seletiva, adora dedicatórias em livros, curte marchinhas de carnaval antigas e lamenta não ter tido chance de ir a um show de Renato Russo. Casada há dezessete anos e mãe de um menino que está crescendo rápido demais, Fabíola gosta de café sem açúcar, doce de leite com queijo e livros com frases que merecem ser sublinhadas. “Anos incríveis” está entre suas séries preferidas, e acredita que mais vale uma toalha de mesa repleta de manchas após uma noite feliz do que guardanapos imaculadamente alvejados guardados no fundo de uma gaveta.