Felicidade ou morte
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Historicamente, a felicidade sempre foi um alvo. Ela costuma ser a motivação idealística que alimenta todos os empreendimentos de vida; uma fonte providencial de onde buscamos sentido e validez existencial.

A todo momento, e por várias fontes, somos instigados a ser felizes. A vontade de felicidade é uma constante na vida dos humanos desde tempos imemoriais.

É claro, existem pessoas de todos os tipos, inclusive aquelas que negligenciam a felicidade em suas vidas, talvez por sempre se frustrarem ao procurarem-na.

Na acepção do filósofo francês Voltaire, “os homens que procuram a felicidade são como os embriagados que não conseguem encontrar a própria casa, apesar de saberem que a têm”.

A felicidade é humanamente universal, mas também um conceito particular, uma vez que os padrões de felicidade de cada pessoa variam conforme personalidade, ideologia, valores culturais e aspectos de criação.

A infelicidade é um indício claro de anormalidade, e isso representa um gravíssimo problema, considerando que não ser feliz é bem diferente de estar infeliz. O pesquisador australiano Hugh Mackay diz:

“É um perigo a ideia de que tudo o que fazemos é partir em busca da felicidade, pois isso tem levado a uma doença na sociedade contemporânea, que é o medo da tristeza.”

Tristeza, melancolia, mágoa e outras emoções indesejadas podem ser antes oportunidades do que obstáculos da felicidade. A superação de reveses e adversidades costuma possibilitar o prelúdio de uma recompensa emocional.

Uma vida de constantes gozos e prazeres, como se guiada pelos ideais epicuristas clássicos, já foi considerada um modelo de existência feliz. Hoje em dia, a associação que se faz entre prazer e felicidade permanece tão óbvia que momentos de felicidade são imperceptíveis para aqueles que não experimentam alguma satisfação sensorial.

O prazer não é um mal em si, mas certos prazeres trazem mais sofrimento do que felicidade, pois corrompem a razão, sem a qual o homem se soterra.

Felicidade não é simplesmente satisfazer um desejo, porque o desejo decorre da falta que, para muitos, é considerada um impedimento de vida feliz.

Felicidade não está relacionada com falta de ambição, embora o excesso de ambição possa gerar uma ilusão de grandeza capaz de transformar os mais bem afortunados em esbanjadores imprudentes, infelizes pelo que fazem com seu destino.

De fato, alguns desejos são igualmente irresistíveis e traiçoeiros, como as sereias das histórias. Como alguns marinheiros que sucumbem à sedução dessas criaturas, há pessoas que preferem se render a todos os seus desejos a suportar a privação ou adiar a gratificação, esta que, imediata, oferece uma certeza de concretização que o futuro não garante.

Para tantos, felicidade é proporcional àquilo que se conquista; possuir o máximo de coisas que se possa ter, sem deixar de querer. Mas apoia-se em bases frágeis quem depende de coisas externas para ser feliz; essa alegria que vem tão logo se vai.

Bertrand Russell, filósofo britânico, afirmava que “não possuir algumas das coisas que desejamos é parte indispensável da felicidade”.

Ao desejar possuir, muitos esquecem-se de usufruir, agindo assim como caçadores de ilusões. Para estes, não existem novas recompensas que supram seu vazio. Anton Tchekov, escritor e dramaturgo russo, disse que “a felicidade é uma recompensa para quem não a procura”. No livro Quem Mexeu no Meu Queijo, o escritor americano Spencer Johnson sugere algo parecido: “Felicidade não é ter o que você quer, é querer o que você tem”.

Não existe felicidade verdadeira, pois não há verdades absolutas, e sim o que se julga verdade por ser conveniente ao estado em que se encontra. A verdade é o que convém em determinada circunstância; varia de intensidade, conteúdo e forma, para cada pessoa, ao longo do tempo. Então, como a felicidade para um pode ser sinônima para o outro?

É interessante como a felicidade é inalcançável se for objetivada. Na verdade, ela só é admitida como consequência espontânea da realização de um sentido implícito do viver.

Em seu tratado Da Felicidade, o filósofo romano Sêneca disserta sobre alguns aspectos que configuram uma vida feliz. Ele indaga:

“Para descobrir o que torna uma vida feliz, vai-se tentando, pois não é fácil alcançar a felicidade, uma vez que quanto mais a procuramos mais dela nos afastamos. Podemos nos enganar no caminho, tomar a direção errada; quanto maior a pressa, maior a distância.”

Muitos rechaçam essa ideia de felicidade fugidia, alegando conseguir ser felizes quando buscam a felicidade ou se mostram merecedoras dela. Mas o mesmo deveria ocorrer com a tristeza, por exemplo, e sabemos que esta emoção nos visita sem que estejamos dispostos a recebê-la. Muitos acreditam (e sentem) que a busca da felicidade é uma das maiores causas de infelicidade.

É claro que, quando fazemos sacrifícios e passamos por provações em busca da felicidade, e ela enfim vem ao nosso encontro, é incrivelmente satisfatório. Mas nem todas as oferendas rendem privilégios, e é por isso mesmo que muitas pessoas que merecem ser felizes se sentem injustiçadas, como réus inocentes que foram julgados culpados.

Na opinião da escritora americana Pearl S. Buck, “muitas pessoas perdem as pequenas alegrias enquanto aguardam a grande felicidade”. Por sua vez, o poeta Charles Baudelaire afirmou algo semelhante quando disse que “a felicidade é composta de pequenos prazeres”.

Segundo a filosofia estoica, por exemplo, a felicidade não pode ser encontrada em nenhum outro lugar além de dentro de si, se onde residir uma mente tranquila que respeita a ordem natural das coisas. Isso significa ter consciência da felicidade interior e também aceitar as suscetibilidades das emoções negativas. Quando a felicidade é supervalorizada, ela perde seu valor.

Oscar Wilde, escritor irlandês, costumava dizer que “apaixonar-se por si mesmo é a única forma de amor permanente”. Assim o é com a felicidade.

Estar consciente de ser feliz é se aperceber alegremente; sentimos como se uma tocha fosse acesa em nossa mente, o que ilumina a existência, aflora o humor e acalenta o espírito. Devemos aproveitar do calor, pois esse fogo cessa rapidamente.

Nietzsche sempre dizia que o destino dos homens é feito de momentos felizes, não de épocas felizes:

“A menor das felicidades, se, simplesmente, é ininterrupta e faz feliz ininterruptamente, é, sem comparação, mais felicidade do que a maior delas, que venha somente com um episódio.”

O médico e psicólogo Viktor Frankl acreditava que a felicidade não é algo encontrável, mas sim um fenômeno que se apercebe na espontaneidade indireta, experimentado subitamente, como um susto. É como dizem: o segredo não é perseguir as borboletas, mas cuidar do jardim para que elas venham na sua direção.

A felicidade, para Frankl, é uma razão proposital que nasce na pessoa que a concebe. Realmente, mais do que querer ser felizes, as pessoas buscam uma razão para sua felicidade, um sentido, sem o qual resta só e somente absurdos.

Felicidade ou morte

No livro Felicidade ou Morte, escrito pelos professores Leandro Karnal e Clóvis de Barros Filho, podemos observar esses dois autores passeando pela história e filosofia a fim de enaltecer a importância e influência da felicidade na vida das pessoas.

Por intermédio de uma série de reflexões e definições sobre o tema, eles oferecem algumas sugestões do que seria uma vida, de fato, feliz.

No prefácio, lê-se o seguinte:

“O livro é certamente um encontro feliz entre os dois autores, que não deixam de tocar em aspectos mais desafortunados do tema, presentes quase como uma sombra indissociável de nossa condição humana. Afinal, poderia a felicidade denunciar certo contentamento com o infortúnio alheio? Ou estaria ela no amor pelo outro? Sem a felicidade, o que nos resta?”

Esse livro é dividido em cinco capítulos, e o conteúdo é apresentado na forma de debate, como se os dois estivessem realmente discutindo ao vivo. Do que um escreve, o outro argumenta, concordando, discordando ou complementando o discurso, e o que temos é um produto intelectual bastante curioso sobre felicidade e morte, temas tão intrínsecos à natureza humana.

O primeiro capítulo do livro fala sobre o vazio da felicidade: a noção de que a notamos mais pela sua ausência do que pela sua presença.

Buscando-se a felicidade, é porque sabemos que ela está ali, mas ainda não a encontramos. Permanecendo no caminho, ansiamos pela sua descoberta e, quando finalmente a atingimos, sentimos um esplendor, mas também pagamos o preço consequente do clímax: a volta ao vazio.

Ao definir a felicidade pela falta, assume-se que não se a tem. Se ela nos foge no âmbito afetivo, é porque buscamos somente a emoção, a sensação, esquecendo de atermo-nos à razão desse sentimento estarrecedor.

Clóvis de Barros Filho afirma que a felicidade é normalmente associada a um momento da vida que dura certo tempo, em que há um apogeu de qualidade e, consequentemente, certa intensidade, como o orgasmo. Mas, como lembra ele, essa experiência emocional é passageira. Se não fosse, seu valor percebido seria reduzido.

Segundo Clóvis, ao longo de toda a história do pensamento sempre houve uma grande luta ou disputa pela identificação das condições de uma vida feliz. Felicidade. Como sua qualidade é ótima, e seu tempo, breve, há um bom motivo para experimentá-la, e também uma curiosidade a respeito de como fazê-la durar mais.

Neste capítulo, Leandro Karnal comenta que, hoje, diferente de antigamente, substitui-se a felicidade pública pela busca de realização pessoal, e por isso não assusta a quantidade de livros de autoajuda nas prateleiras de qualquer livraria ou biblioteca. Para ele, nós não temos tanta esperança de ser felizes além do âmbito familiar.

“Isso, porém, mostra grande contradição, pois a felicidade pessoal e a felicidade familiar são a fonte de todo o trabalho dos psicólogos, psicanalistas e terapeutas porque são a causa da infelicidade, dos traumas e problemas dos seres humanos. O campo familiar é alvo de nove entre dez conversas de pacientes com o terapeuta. Ninguém diz que sente trauma em virtude de uma questão política, por exemplo.”

É interessante como substituímos o campo da utopia sociopolítica para o campo pessoal, este que continua sendo incapaz de responder ao desejo de felicidade.

Segundo Karnal, o conceito de felicidade, de tão difundido, esvaziou-se como signo; é algo projetado, em vez de vivido.

À medida que precisamos de mais coisas para ser felizes, diminui a probabilidade de felicidade; seus momentos se tornam ainda mais raros, porque sempre desejamos mais do que ela nos permite. Assim, quanto mais complexa for a reflexão sobre felicidade, mais improvável ela será. Clóvis afirma:

“A ideia de atrelar felicidade a coisas denuncia uma impossibilidade de satisfação, porque basta ir à rua para percebermos que não temos muito mais do que temos. E sempre será assim.”

A ideia de felicidade atrelada ao apego materialista é progressivamente difundida no mundo moderno. Esta idealização massiva infere que associemos felicidade à possibilidade de ter mais do que temos, ou, é claro, de desejar algo que não temos, mas achamos que podemos ter. A realidade contraria esse desejo persistente: mais escolhas parecem ofuscar a felicidade.

Em algumas culturas orientais, felicidade é não possuir nada. Isso é inimaginável para a grande maioria das pessoas, pois não existe uma só que se imagine feliz tendo seus bens subtraídos. A solução é desejar menos? Não, mas é mais comum ver infelizes que desejam mais do que infelizes que não desejam.

No livro, Karnal cita a felicidade como um elemento comparativo. Ou seja, só saberemos ser felizes em comparação a quem não é, ou vice-versa. Sabe quando está feliz aquele que já esteve infeliz.

Como dizem os budistas, “todos têm anseios, e por isso são infelizes”.

Para que a vida seja boa, ou menos sofrível, é necessária uma certa reconciliação com o mundo: aceitá-lo como ele é. Isso requer gratidão e resiliência: a primeira para agradecer por tudo aquilo que existe de bom, e a segunda para superar tudo aquilo que existe de ruim. Muitas coisas no mundo são dificilmente amáveis. Aceitar que o mundo é repleto de maldade, por exemplo, é muito mais difícil do que aceitar toda sua lindeza. Amar o mundo como ele é significa tolerá-lo.

O segundo capítulo do livro aborda a relação entre felicidade e liberdade. Pessoas sem liberdade podem ser felizes? Sim, pois o aprisionamento ainda permite que elas conservem um sentido, uma razão para viver, apesar da abstenção de sua liberdade.

A vida é feita de escolhas e, como disse Sartre, “o homem é condenado a ser livre”. Assim, a liberdade de agir acompanha uma vertigem, visto que o homem liberto entende que pode tomar todo o tipo de decisões, inclusive as mais terríveis, o que põe à prova de fogo seu senso de responsabilidade.

Quanto maior lucidez de pensamento temos, mais cientes estamos das possibilidades de nossas escolhas. Mas parece haver um entrave entre a vontade da variedade de opções disponíveis para se escolher, e a dificuldade de estar satisfeito perante a abnegação do que não foi escolhido. Às vezes, preferimos vencer a dúvida ao ter menos caminhos possíveis para onde seguir. É mais fácil escolher uma entre duas opções do que abdicar de nove entre dez opções.

Há um sofrimento em cada escolha, seja consciente ou não. Assim, o livre-arbítrio não facilita a felicidade, antes a polariza. A liberdade de poder trilhar o próprio destino acompanha um sentimento desagradável, que é o medo de se arrepender. Como diz Clóvis:

“Feita a escolha, esse sentimento de arrependimento não desaparece. Porque, curiosamente, nunca sentimos as tristezas das vidas que preterimos. Sentimos só as tristezas da vida que escolhemos viver, o que nos dá a impressão de que, se tivéssemos escolhido diferentemente, aquelas tristezas não teriam sido vividas. Outras, certamente, mas não aquelas. Logo, ser feliz para definir um caminho entre tantos possíveis é uma história que vem acompanhada de sentimentos, digamos, meio distantes do que chamamos de felicidade.”

Se assumirmos que, por exemplo, um escravo não é feliz, não podemos deixar de assumir que quem tem direito a escolha também sofre. Clóvis acrescenta:

“Sempre que alguém lhe disser, com entusiasmo, que não existe felicidade quando se é escravo, sorria. Porque, afinal, todos nós acabamos nos deixando escravizar aqui e acolá […] Sofre o escravo, que não é livre, e sofre o livre, que não é escravo.”

Nenhum ser humano tem a liberdade mais radical (e ilusória), que é a imortalidade. Por que então haveria uma liberdade suprema?

Inserimo-nos em instituições e participamos de comunidades para dividir a responsabilidade pela liberdade, mas assim nos mantemos parcialmente presos, por questão maior, a de segurança.

Toda escolha implica uma ou mais perdas. Não gastamos tempo calculando todos os possíveis gastos advindos de nossas decisões, mas com certeza lamentamos mais quando o prejuízo excede o lucro, do que congratulamos pela situação inversa.

Cada escolha é um risco por sua incerteza. Mesmo as escolhas rotineiras, que parecem sempre iguais e dispõem resultados equânimes, também continuam sendo incertas, pois não estamos livres do acaso.

O terceiro capítulo do livro discute o outro lado da moeda, no caso, a infelicidade. Karnal ressalta que muito da felicidade provém do desejo de ser feliz, e de derivados atribuídos. O desejo de envelhecer com saúde, de viajar o mundo, de conhecer um amor para a vida, de trabalhar em um emprego dos sonhos, por exemplo: todos esses são ideais persecutórios de uma felicidade plena. Mas, e aqueles que não desejam esse tipo de coisa? São menos felizes por isso? A resposta costuma vir com um sonoro “sim”.

Muitas pessoas, pelo menos a maioria delas, traçam objetivos padronizados e elaboram metas em busca de uma felicidade compensatória aos seus esforços empreendidos. Como diz Clóvis:

“Toda sociedade é um espaço de definição de troféus legítimos, isto é, aquilo que podemos buscar e pelo que seremos aplaudidos.”

Dessa forma, a nossa energia vai sendo canalizada para a conquista de pequenas vitórias que, juntas, vão construindo um legado que nos faz sentir significativos, úteis, produtivos e, a maior nível, merecedores de uma felicidade que justificou todas essas disputas.

Essa ideia, no entanto, considera a felicidade como fim, e não meio de cada ação vivida. É como alguém que, incessantemente, procura o baú de ouro no fim de um arco-íris, esquecendo-se de contemplar a beleza exuberante de suas cores. Ou como alguém que se prepara para uma escalada. Quem escala uma montanha objetiva chegar ao topo, e espera, com pesar, que passará por muitas dificuldades no meio do caminho, mas nem olha ao seu redor. Ou alguém que, quando viaja, deseja apenas chegar logo a seu destino, deteriorando a experiência do deslocamento.

O que se prova, neste caso, é o seguinte: para instantes de felicidade, há de se suportar períodos de infelicidade. Mas muito desta infelicidade, há de se dizer, é arbitrária e exagerada, visto que as sensações de sofrimento que preludiam o “clímax de felicidade” nascem em nós por antecipação ou imaginação e, ansiosos, sofremos mais do que o necessário antes de sentirmo-nos felizes.

Neste terceiro capítulo, os autores também discutem sobre como a grande maioria dos comportamentos, representações e identidades são determinados historicamente pela sociedade vigente. Todos nós temos definições de si, as quais devem estar de acordo com a imagem social que desejamos ter. Segundo Clóvis:

“Cada um de nós, precisando do endosso do mundo social, acaba também endossando as definições dos demais. Assim, vamos vivendo acreditando ser alguma coisa para precisarmos nos angustiar cada vez menos. Talvez isso explique o fato de que tantas pessoas, ao longo de sua trajetória social, acabem se tornando, digamos, espetacularmente resignadas.”

Isso faz com que as pessoas se subvertam em prol da aceitação social a partir de uma imagem construída. Somos o que somos em negociação com a sociedade, que aceita e premia ou, então, rejeita e pune seus atores.

Vivemos fazendo representações de papeis que julgamos apropriados para cada cena e público. Essas dissimulações podem bem estabelecer o que é socialmente desejável, mas também causam grandes frustrações individuais. Quando a crença na representação é real, a pessoa sofre um lapso de consciência, pois, por certo tempo, faz os outros creem que é algo, quando, na verdade, é outro. Pois está cada vez mais acreditando em sua mentira, tanto que, muito possivelmente, ela se torne uma inverdade, ou seja, uma ilusão.

De acordo com Karnal, essa ideia da representação cria o real como se entende e percebe; o real que dá sentido à existência. Portanto, a felicidade possui artificialidade, historicidade; ela tem elementos.

“Desse modo, nossa felicidade ganha um outro contorno difícil: ela depende da infelicidade, da fraqueza ou do não desenvolvimento dos outros.”

Em Parerga e Paralipomena, o filósofo Arthur Schopenhauer narra sobre um lobo faminto que tem à sua frente duas ovelhas para se alimentar, embora ele precise comer apenas uma delas. A felicidade, para uma ovelha, está que o lobo escolha a outra. Assim, para uma ovelha poder ser feliz (ao manter-se viva), a outra foi destinada à infelicidade (ao ser devorada).

Essa narrativa pode explicar a pulsão de morte e a estranha sedução que temos pela tragédia alheia: ao notarmos alguém prejudicado ou doente, significa que isso não está acontecendo a nós.

Não admira o fato de algumas pessoas gostarem de assistir programas policiais e noticiários, os quais mostram, em boa parte da programação, ocorrências criminais, catástrofes, acidentes e circunstâncias de desolação, morte, adversidade e desamparo. Ao mesmo tempo em que isso causa revolta e solidariedade nos telespectadores, promove subliminarmente alívio e gratificação. Curioso é como o egocentrismo também pode gerar altos índices de audiência.

Karnal reflete, daí, que a inveja é um dos patamares da felicidade:

“A comparação é a única categoria ontológica para que possamos estabelecer essa felicidade. Ou seja, a existência é o local que tenho que cercar com a ideia de que a infelicidade esteja lá fora […] Mas não podemos nos esquecer de que todas essas infelicidades alheias estão em nós também, e que seríamos os frustrados que acham que têm uma vontade superior a dos frustrantes.”

Já no quarto capítulo, a pauta se baseia na conexão íntima entre felicidade e amor.

Clóvis parte dizendo sobre a vontade de potência, remetendo ao filósofo Spinoza. Precisamos de uma certa quantidade de energia para viver, mas também temos outra reserva energética: a vontade, aquela que busca mais energia.

Segundo o autor, o mundo que nos afeta positivamente é aquele que nos alavanca a potência de agir, e o mundo que nos afeta negativamente é aquele que nos apequena a potência de agir e nos aproxima da morte.

Nós vivemos imaginando mundos potencializadores e mundos apequenadores. Buscamos um e evitamos outro. Isso lembra um fliperama: se dirigimos o objeto para certos lugares, ganhamos pontos; se dirigimos o objeto diretamente para os obstáculos, perdemos pontos. Continuamos jogando em busca de obter o máximo de pontos que pudermos, pois sabemos que isso promove alegria. Para Clóvis:

“Alegria é quando nossa potência de agir aumenta; é o momento em que nossa energia vital se eleva e nos tornamos mais de nós em nós mesmos – uma espécie de adensamento do nosso ser nos limites do próprio corpo […] Mas é claro que o mundo é infinitamente competente para nos entristecer. Ou somos infinitamente desprovidos de competência para nos alegrar sempre.”

Existem momentos na vida em que a alegria do outro é traduzida em nossa alegria, enquanto a tristeza do outro causa nossa própria tristeza. Essa projeção emocional é traço da empatia e, como afirmou o personagem Hannibal Lecter na série de TV Hannibal, “a empatia é uma faca que aponta para os dois lados”.

Assim como projetamos a emoção alheia em nós mesmos, podemos reagir contrariamente à uma emoção compartilhada. Os afetos podem ser paralelos (provindos do amor) ou cruzados (provindos do ódio). Nas palavras de Clóvis:

“A felicidade não deve ser nem uma linha energética paralela ao chão de estabilidade absoluta, porque nesse caso teríamos morrido, nem tampouco um crescimento ininterrupto de potência, que nos levaria a explodir. Talvez a vida seja mesmo isso aí. Para que ocorra ganho de potência é preciso ter havido, antes, perda de potência.”

Dentre as forças que influenciam na felicidade, a mais forte delas é o amor, “a vitória da alegria compartilhada sobre todas as outras”.

Clóvis prossegue nesse capítulo falando sobre as obsessões do amor possessivo. Em uma relação genuinamente amorosa, os que dela participam compartilham suas fragilidades, sem que seus amantes disso se aproveitem para exercer suas forças. Mas há a desgraça no amor; fome que consome e ao mesmo tempo alimenta. Aí está o amor possessivo, aquele que se revela claramente como ânsia de propriedade.

“Nesse amor, o amante quer a posse exclusiva e incondicional do outro, objeto de seu desejo; o controle sobre seus atos, pensamentos e apetites. Quer ser amado integralmente, completamente, habitando e preenchendo a alma do amado. Para isso, se empenha em enfraquecer todos os potenciais rivais, tudo que supostamente possa ameaçar sua soberania e alegria, convertendo-se no guardião supremo de seu tesouro e empobrecendo o amado com privações de toda e qualquer vida que ponha em risco seu tirânico monopólio.”

A expectativa de alegrar o outro foge do controle autoritário por exclusividade, deste possessivo que se apodera de seu amado como um sanguessuga. Segundo Clóvis, o valor amado dos verdadeiros amantes está nos valores que respeitam.

Segundo um dos princípios cristãos, é no outro que reside a autorrealização. Seguindo essa linha de pensamento, é dando que se recebe, ou seja, o amor pelo outro valida o próprio sentido de amar. Necessita-se, antes de mais nada, uma capacidade de entrega altruística, de reciprocidade.

Há mais prazer em dar do que em receber? Há mais prazer em ajudar do que em ser ajudado? O que se pode dizer é que, para muitos, não só cristãos, é claro, a própria felicidade não só é possibilitada pela felicidade do outro, mas também depende da felicidade do outro. Veja, a felicidade nunca deixa de residir na interioridade. Assim sendo, a pessoa procura fazer outro semelhante feliz com o intuito de redescobrir a felicidade em si mesma: a isso os cristãos chamam de caridade.

A caridade, além de força, é um sinal de fraqueza, de fragilização, mas nunca de vergonha. Ela é um disfarce egoísta, apesar de sua própria negação. Na opinião de Karnal, somos solitários, totalmente solitários, ainda que eventualmente solidários.

“O primeiro pecado de Lúcifer acontece justamente quando ele, em nome da vaidade, diz “eu” em detrimento de “nós”, na história da Criação. Hoje, a primeira felicidade que julgamos plena é quando dizemos “nós”, e não “eu”. Penso que a esperança de imortalidade, que reside nas pessoas que amamos e naquilo que constitui uma história, pode ser considerada uma perspectiva ingênua. Mas é nessa ingenuidade que está, praticamente, a única possibilidade que encontramos, neste momento, de ter felicidade.”

Segundo Karnal, a felicidade apresenta muita construção e elaboração de memória.

“O primeiro beijo é romântico como lembrança; naquele momento é mais medo do que prazer. A lua de mel aumenta de importância à medida que o casamento entra em rotinas e desgastes. Quando prosperamos materialmente, em geral, pensamos com certa poesia nas dificuldades daquela época anterior, menos abastada. Assim, tudo vai sendo elaborado de forma que se criem na mente os processos de felicidade e infelicidade.”

Portanto, a felicidade, nesse sentido, é construída a partir de uma noção prévia de infelicidade.

Por fim, no quinto e último capítulo, os autores debatem argumentos filosóficos sobre “a felicidade aqui e agora”.

Clóvis chama a atenção para a necessidade de lutarmos pela alegria no mundo da vida como ele é. O discurso de que precisamos comprar a felicidade com sofrimento não deixa de ser real, mas se torna a base de um impedimento para uma vida feliz aqui e agora. No fundo, esse é o discurso religioso da valorização do sacrifício.

Ao transferir a responsabilidade de felicidade para o futuro, tornamo-nos seres esperançosos, sim, mas também resignados.

Incontáveis são as pessoas que, por exemplo, pensam ser preciso trabalhar ferrenhamente de segunda a sexta para que, finalmente, o fim de semana chegue. Ou que é preciso trabalhar 40 anos para que se possa aposentar e assim aproveitar a vida. Mas o fato de que se precisa suportar isto para aquilo é assassinar o presente em virtude de um futuro, talvez, melhor.

Não seria melhor a alegria durante uma semana inteira de trabalho do que apenas experimentá-la na sexta-feira, após o expediente?

Como diz Karnal:

“Só temos um tempo, que é o presente. Não somos mais no passado e ainda não somos no futuro; é sempre este presente. E ele tem que ser bom. Não pode ser um sofrimento enquanto estou trabalhando e uma alegria no descanso. Não pode ser um sofrimento na juventude para uma possível velhice melhor. Penso que essa é uma leitura equivocada que fazemos, porque viver o momento é uma maneira de não sobrecarregar expectativas para o futuro e não carregar mágoas em relação ao passado. Esse ‘presentismo’ não quer dizer ignorar a experiência, mas significa pensar que ela é determinante para as coisas.”

Em resumo, o livro Felicidade ou Morte põe à discussão a busca humana incessante pela felicidade, sendo um interessante repositório de reflexões acerca do tema. Como dizem:

“Seja feliz, ou morra tentando.”







Escritor e revisor. Eu me considero uma pessoa racional, analítica, curiosa, imaginativa e ansiosa. Gosto de ler, ouvir música, assistir filmes e séries, beber e viajar com os amigos. Estudioso de filosofia, arte e psicologia. Odeio burocracias, formalismos e convenções. Amo pessoas excêntricas, autênticas e um pouco loucas, até certo ponto. Estou sempre buscando novas inspirações para transformar ideias em palavras.