Eu peço a um anjo que leia essa carta para os meus pais.

Mãe, a senhora não sabe ler. Pai, o senhor mal soletrava as palavras e, a essas alturas, aos quase 80 anos, a sua visão deve estar bem fraquinha e o senhor não levou os seus óculos para o céu.

Por isso eu pedi a um anjo que leia essa carta para vocês. Eu só quero falar algumas coisas que eu nunca disse enquanto estavam aqui comigo.

Na verdade, quero mesmo é agradecê-los e falar de uma saudade que me disseram que passaria com o tempo, mas que tornou-se presença constante.

Pai, eu virei escritora, sabia? Vou te lembrar de quando isso começou: foi lá no nosso sítio, quando eu tinha uns 9 anos. Eu me lembro, pai, do dia em que o senhor foi na minha escola buscar meu boletim e a professora Hergina me elogiou muito e te disse que eu estava escrevendo muito bem e que não errava nenhuma palavra nos ditados.

Vi em seu semblante o orgulho estampado, daí voltamos para casa montados no cavalo Roxão. No caminho, o senhor me disse: “minha fia, a partir de hoje é você que vai escrever as cartas para os seus tios lá de Brasília”. Eu gelei, pai, fui pega de surpresa e não me sentia preparada para aquela atribuição, mas o senhor parecia saber o que estava fazendo.

Daí, chegamos em casa, e o senhor pediu para que eu lavasse as mãos, levou a nossa mesa para debaixo do pé de manga que ficava na lateral da nossa casa, levou também o banco, o seu caderno que era reservado só para as cartas e a sua caneta.

Ah, o senhor deixou claro para os meus irmãos que não queria ninguém fazendo barulho por perto.

Então sentamos no banco e o senhor começou a ditar a carta que seria entregue ao tio Porfírio, começou mais ou menos assim: Fazenda Brejão, município de Posse – Go…a data…Prezado e querido mano. O senhor ditava pausadamente, enquanto conferia a minha caligrafia. Quando terminava a carta, o senhor me pedia para ler novamente e assinava. Em seguida dizia: “a minha carta tá pronta, agora, do outro lado do papel, você escreve o que quiser para o seu tio”. Então, no verso da carta sempre tinha uma mensagem de minha autoria.

A carta era enviada e, tempos depois, respondida. Meu tio sempre elogiava a carta, a caligrafia etc. Então eu fui promovida a “escrevedora” de carta do senhor e de alguns vizinhos. Aquilo virou uma paixão, pai, eu podia perceber que o senhor acreditava em meu potencial e era tudo o que eu precisava para acreditar em mim também.

Com sua simplicidade de caipira, o senhor plantou em mim um amor desenfreado por escrever cartas, tempos depois, redações, poesias e textos e sei que isso evoluirá para muitos livros. Prometo, em todos os meus livros, fazer uma dedicatória para o senhor, tá bom? Pai, muito obrigada por ter me apresentado essa paixão que tanto me alegra a alma e que alegra muitas outras pessoas também, pena que o senhor não está aqui para dividir essa alegria comigo.

Mãe, para a senhora, eu quero falar de uma lembrança linda que tenho: nós duas molhando a horta na beira do rio. Todas as vezes que sinto o cheiro de coentro e de cebolinha, eu viajo nas lembranças, mãe. Aquela horta linda e bem cuidada, aquele rio maravilhoso, os pássaros cantando nas árvores e nós duas dentro do rio jogando água nas hortaliças com uma cuia feita de cabaça. Ah, mãe, outra coisa: foi com a senhora que eu aprendi a amar os animais.

Lembro do seu cuidado com os bichos no nosso sítio, do seu zelo e paciência com os animais que tinham alguma deficiência e da sua indignação quando via alguém com espingarda ou estilingue passando na estrada. Obrigada por esse legado, mãe, isso para mim é uma riqueza.

A tua saudade corta feito aço de navalha (Pena Branca e Xavantinho). Estejam com Deus, até um dia, meus eternos amores.

Imagem de capa: I.Dr/shutterstock







Sou uma mulher apaixonada por tudo o que seja relacionado ao universo da literatura, poesia e psicologia. Escrevo por qualquer motivo: amor, tristeza, entusiasmo, tédio etc. A escrita é minha porta voz mais fiel.