Entendendo o filme: A Origem

Christopher Nolan já é um dos melhores cineastas da sua geração, o que lhe garante uma legião de fãs. Em seus filmes, Nolan sempre gosta de brincar com a psique humana, criando jogos ilusórios e uma série de metáforas. Corroborando com isso, temos o filme “A Origem” (Inception) de 2010, estrelado por Leonardo Di Caprio. O filme foi um grande sucesso, se tornando um dos clássicos do século XXI. Brincando entre realidade e fantasia, imergimos na história de Dom Cobb (Di Caprio) e ao final, por mais que tenhamos prestado atenção durante todo o tempo, ficamos com a famosa dúvida: o pião caiu ou não? A fim de ajudar a elucidar o problema, mas longe de resolvê-lo, afinal, a interpretação do filme depende muito da subjetividade de quem o assiste, apresentarei algumas possibilidades de resolução para o filme. Sem mais delongas, vamos lá.

Realidade

A primeira teoria (talvez a com mais adeptos) é a de que Cobb cumpre o seu arco e retorna verdadeiramente para os seus filhos, ou seja, segundo essa teoria a parte final realmente corresponde à realidade, portanto, Cobb retorna de fato para a sua família. Sendo assim, não há nenhum tipo de inserção em Cobb, já que, ao acordar no avião, ele olha de modo expressivo para a sua equipe e esta o corresponde, com um ar de satisfação, missão cumprida, uma vez que o plano de inserção em Fischer (Cillian Murphy) funcionou. Desse modo, Cobb lembra-se de onde está e como chegou até ali, fato que contraria a ideia de que ele estaria sonhando, posto que como o próprio explica, no sonho o indivíduo nunca se lembra de como chegou lá e ele sabia onde estava e como tinha chegado. O que gera a dúvida sobre o retorno ser ou não realidade é o fato dele retornar diretamente para o avião, pulando etapas, mas isso é facilmente explicado, dado que como ele já estava no 4º nível do sonho, teria apenas como retornar para trás, isto é, para os sonhos anteriores ou acordar, no entanto, como ele havia entrado nos sonhos dos outros, os quais já tinham acordado, só restava a ele também acordar e é isso que exatamente acontece. Outro ponto que pode ser levantado para afirmar a teoria em tela consiste nos seus filhos, que ao final do filme não estão com roupas iguais, apenas parecidas e estão um pouco mais velhos que em seus sonhos.

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A teoria possui validade, porém, o questionamento desta está na série de conveniências que existem a favor de Cobb, como o aparecimento de Saito providencialmente em Mombaça, além é claro dos questionamentos que Cobb sofre constantemente acerca do seu conceito de realidade e das perseguições que sofre, como no caso de Mombaça. No entanto, mesmo essas situações poderiam ser compreendidas dentro desse prisma, já que Mombaça é uma área da Cobol Engenharia (empresa para a qual Cobb presta serviços no início do filme), bem como, ele está com a cabeça a prêmio, justificando a perseguição que sofre. Saito, por sua vez, poderia com o interesse que possui, verdadeiramente o estar protegendo, como diz no filme. Outros pontos que também chamam a atenção consistem no seguinte: como Mal conseguiu ir parar na janela do outro lado do prédio na cena em que se “mata”? Bom, não seria impossível imaginar que ela tenha alugado a suíte em que estava sem que Cobb soubesse. Ademais, temos o curioso fato de Saito esperar tanto tempo por Cobb no limbo, uma vez que sabia que estava lá e bastava se matar para retornar à realidade. Analisando essa situação, segundo a teoria em voga, Saito pode ter esperado Cobb como uma forma de realmente confirmar que o serviço foi realizado. Enfim, como disse a teoria é válida, mas os pontos supracitados a tornam extremamente questionável, de tal maneira que somos levados a segunda teoria, na qual todo o filme se passa no mundo dos sonhos.

Sonho

Segundo essa teoria, todo o filme é um sonho que se passa na cabeça de Cobb. Ele e sua mulher, Mal (Marion Cottilard), exploravam profundamente outros níveis de sonho, entretanto, ele começa a perder a capacidade de distinguir o que é real do que é sonho. Sendo assim, impossibilitado de diferenciar realidade de sonho e, portanto, perceber a verdade, Cobb cria a ideia de que é Mal que não consegue diferenciar sonho de realidade. Percebendo a situação em que o marido se encontrava, Mal tenta tirá-lo daquela situação e fazê-lo retomar a lucidez. Para tanto, ela decide retornar à realidade e o convence de que precisam se matar para retornar. O seu plano possui êxito em várias camadas, todavia, ao chegar ao 1º nível do sonho, Cobb acredita que já retornara à realidade. Desse modo, na cena em que Cobb chega à suíte de um hotel, onde comemorariam o aniversário de casamento, e depara-se com Mal do outro lado do prédio, preparando-se para pular da janela, ainda faz parte de um sonho, tanto que ela insistentemente tenta convencê-lo a também pular, a fim de que retornem ao mundo real. O que corrobora isso é o fato dela não estar na janela da sua suíte, e sim na janela do outro lado do prédio, ou seja, se não fosse um sonho como ela conseguiria chegar até o outro lado do prédio? O plano dela, contudo, não obtém êxito e, contrariamente a sua ideia de fazê-lo retornar à realidade, planta nele a ideia de culpa pela sua morte. A culpa o leva a um estágio muito maior de perturbação e angústia, no qual passa a confundir ainda mais o mundo real do mundo dos sonhos, levando-o a ideias de perseguição e de que precisa se refugiar em vários lugares do mundo, distante, portanto, dos filhos.

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Ao fracassar, Mal decide contratar um especialista em sonhos, assim como Cobb. Ela, então, contrata Saito, que não é diretor de nenhuma megacorporação, mas um especialista no mundo dos sonhos. Saito junto com a equipe formada pelos amigos de Cobb criam a complexa história de que estão em uma missão para inserir a ideia na cabeça do Fischer e de que se tudo ocorrer devidamente, Cobb será inocentando através do grande poder de Saito. O objetivo, assim, ao tornar Cobb inocente do ponto de vista legal é na verdade livrá-lo da culpa que ele carrega pela morte de Mal e que o aprisiona no mundo dos sonhos. Um fato interessante e que acaba corroborando com essa teoria está em Ariadne (Ellen Page) que percorre todos os níveis de sonho junto com Cobb e é a única que o questiona sobre Mal e o que ocorrera entre eles. Ariadne, segundo a mitologia grega, não é criadora de labirintos, mas a mulher que ajuda o herói Teseu a escapar do labirinto, o que ela faz de forma bem parecida na trama, demonstrando a sua individualidade, como na cena em que dobra a cidade de forma espelhada e em seguida fecha um vão da ponte formando um espelho para que Cobb possa enxerga-se enquanto sujeito desvinculado de Mal, isto é, da culpa que carrega. É Ariadne, assim, que guia Cobb até o limbo, além de matar Mal na ocasião. No limbo também se encontra Saito, que já havia morrido anteriormente, mas que prometera a Cobb o seguir para fora do limbo, isto é, para a realidade, caso este fosse buscá-lo. Nesse ponto reside o fato mais curioso e que melhor sustenta essa teoria, já que se Saito sabia que estava no limbo não necessitava de Cobb para retornar, poderia tranquilamente retornar sozinho. Porém, como o objetivo de Saito era implantar a ideia de libertação na cabeça de Cobb, precisava esperá-lo para que o plano fosse executado de forma plena, o que no caso de Cobb era acreditar que o plano de inserir a ideia na cabeça de Fischer foi um sucesso e, portanto, teria a sua recompensa: a liberdade para retornar a sua casa e seus filhos. A verdadeira catarse (do grego “kátharsis” que designa o estado de libertação psíquica) de Cobb, no entanto, vai muito além, sendo na verdade a libertação da culpa que sentia pela morte da sua mulher e que o aprisionava e o impedia de prosseguir. Após isso, Cobb, então, “reencontra” seus filhos e consegue o mais importante, a superação da ideia de culpa que carregava e o fazia prisioneiro. Ou seja, ele ainda encontra-se no mundo dos sonhos, mas livre da culpa, consegue dar o primeiro passo para que consiga retornar à realidade. Além desses pontos mais fortes, outros elementos reforçam essa teoria, como a extrema conveniência a favor de Cobb que acontece constantemente, como o fato de Saito aparecer magicamente em Mombaça para salvá-lo, Miles estar o esperando no aeroporto, Ariadne aceitar facilmente um trabalho ilegal e perigoso, em várias situações ter alguém questionando a sua realidade e ser perseguido enquanto estava contratando Eames (o que pode ser explicado pelo fato das projeções procurarem os sonhadores).

É uma teoria bem mais complexa que a primeira, mas possui bastantes elementos que a validam, além de trabalhar a ideia de inserção e ilusão em um nível mais profundo que a primeira, embora ainda deixe pontos em aberto, como, por exemplo, em que momento Saito e os amigos de Cobb penetraram em sua cabeça? Percebam que se o filme se passa completamente no mundo dos sonhos, o momento em que Saito e a equipe preparam-se para iniciar o plano, isto é, a parte em que estão no mundo real, está oculta no filme, o que abre uma série de possibilidades, tornando a teoria tão questionável quanto a primeira.

Realidade e Sonho

Segundo essa teoria, o filme possui partes de realidade e partes de sonho. Este começaria a partir da conversa que Cobb tem com Miles, no qual diz que precisa de um bom arquiteto. Miles aproveita a ocasião para inserir da cabeça de Cobb a libertação da culpa pela morte da mulher, a fim de que livre da culpa possa retornar para os seus filhos. Desse modo, teríamos um momento inicial de realidade até o encontro entre Cobb e Miles, este se aproveita da situação e inicia o seu plano de inserir a ideia de libertação da culpa pela morte de Mal em Cobb. Essa inserção começaria em Mombaça a partir do momento em que Cobb visita Yussulf e testa um sedativo. A partir desse momento tudo que acontece se passa na cabeça de Cobb, onde o plano de Miles é executado, de forma similar ao da segunda teoria. Até aqui essa teoria é a mais plausível, entretanto, ela tem como ponto falho, o retorno de Cobb, uma vez que se ele começa a sonhar ao visitar Yussulf, ao acordar e retornar ao mundo real, ele deveria retornar para o mesmo local e vemos que ele acorda no avião. Sendo assim, caso o início do filme se passe no mundo real e Miles esteja por trás de um inserção em Cobb, está apenas poderia acontecer a partir do avião e por meio de Ariadne, em uma subtrama que acontece paralelamente a de Fischer. Nesse caso, Saito seria de fato um executivo poderoso que contrata Cobb e sua equipe e estes verdadeiramente buscam realizar a inserção em Fischer, todavia, Ariadne (pupila de Miles) está incumbida de fazer a inserção em Cobb de forma paralela e se analisarmos realmente ela é a grande responsável pelo autoperdão de Cobb. Com isso, essa teoria se desenvolve de maneira muito melhor e mais firme, até que chegamos a Saito e a sua “infinita” espera no limbo e, assim, tudo se reinicia.

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Conclusão

Como uma grande obra de arte, A Origem é um filme belo e complexo e, portanto, uma peça que se ressignifica a cada novo olhar, de modo que é impossível chegar a uma conclusão definitiva sobre a trama. Todas as teorias supracitadas possuem pontos que as convalidam e pontas abertas que as tornam questionáveis, assim como outras teorias e abordagens. O mais interessante do filme, dessa forma, é perceber as suas infinitas possibilidades que mudam de acordo com o observador, já que sumariamente a trama do filme é sobre a mente humana, os sentimentos que a forma e a sua extrema complexidade, de tal modo que chegar a uma conclusão absoluta e irrefutável sobre o filme seria no mínimo desconsiderar a complexidade do mote central da história e tirar o encanto de uma bela discussão. Sendo assim, não tenho uma resposta definitiva, apenas possibilidades, uma vez que, como dito, estas dependem da subjetividade de cada um. Mas como a inquietação e a curiosidade são sempre grandes, o que vocês acham: o pião caiu ou não?

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