E quando a família não consegue cuidar do seu ente querido em casa?

Por Marcela Alice Bianco e Josie Conti

Em algum momento da vida de nossas famílias precisaremos lidar com o adoecimento e a dependência temporária ou permanente de um de nossos entes queridos. Tal evento configura-se como um período de crise, o qual exige adaptação às novas demandas individuais e familiares como um todo. A primeira decisão a ser tomada é quem irá assumir os cuidados e se isso ocorrerá dentro ou fora do ambiente familiar.

Momento permeado por uma variedade de sentimentos, que, dependendo de como a família está estruturada, pode ser mais ou menos estressante. Cuidar de um outro ser humano exige um grau de desprendimento que nem todos são capazes de ter, ora por características pessoais, ora por falta de disponibilidade.

“A evolução da doença leva todos ao limite, roça todos os sentimentos e chega a colocar em causa alguns afetos. A perda de dignidade é obscenamente evolutiva e depressa chega ao ponto da ruptura. O internamento é tão inevitável quanto doloroso, tão necessário quanto adiado ao limite.”
Sónia Bigodes, em “O meu pai tem Alzheimer”

Diferentemente do que ocorria no passado, em que as famílias eram maiores e o cuidado mútuo entre os membros era algo comum e cultivado geração após geração, vivemos um momento de diminuição do tamanho das famílias, com papéis mais dinâmicos e flexíveis, sendo que a mulher que antes assumia o cuidado da família, também está, na maioria das vezes, no mercado de trabalho. Múltiplas questões que afetam a disponibilidade para o cuidado e que limitam o número de cuidadores em momentos de crise.

Assim, muitas vezes, quando a família assume inicialmente o cuidado de alguém doente, a responsabilidade recai sobre um ou poucos membros, que são chamados de cuidadores principais.

Estes dividem as responsabilidades sobre o cuidado físico, emocional e material do dependente, em detrimento de suas próprias necessidades individuais. Quando esse cuidado é intenso e transcorre ao longo dos anos é que os cuidadores principais se percebem, em algum momento, cansados, estressados e exauridos em sua capacidade de cuidar.

Quando alguém adoece não há datas e “O tempo se torna opressivo quando a liberdade acaba e nossa esperança deixa de existir. Quando vivemos naquele tipo de infelicidade diária, começamos a pensar que o tempo nos oprime.” filósofo Mauro Maldonato, falando sobre o tempo.

As dificuldades encontradas no papel do cuidador surgem de diversas fontes: isolamento social dentro e fora da família, perda de liberdade, privacidade e tempo de lazer; necessidade de adaptação do ambiente doméstico ou até mudanças de moradia; conflitos familiares em consequência do papel do cuidador e da situação de cuidado; exigências do doente ou dos demais familiares; insegurança em relação ao cuidado oferecido (se é correto ou não) e falta de informações sobre a duração do comprometimento assumido, que pode perdurar até o falecimento de quem está sendo assistido.

“Para quem cuida, a maioria das necessidades pessoais passa para o segundo plano. São raríssimos os casos onde é possível dividir as funções entre pessoas próximas e manter alguma qualidade de vida. Também pode existir a intensificação de conflitos de relacionamento quando o doente e o cuidador já não tinham uma relação pessoal amistosa. Ao contrário da simplificada ideia do doente como vítima, há o contraponto de aspectos psiquiátricos que podem ser agravados pela limitação e pela revolta com relação à dependência e à nova situação de necessidade cuidados. Um doente pode escravizar toda uma família e torná-la, em diferentes aspectos, tão doente quanto ele.”

Nestes períodos, seria necessário avaliar quais os recursos pessoais e financeiros disponíveis para lidar com a situação. De um lado é possível lançar mão de estratégias de enfrentamento dentro da própria família. A contratação de um cuidador formal para auxiliar os cuidados no domicílio, a redistribuição dos cuidados entre os membros da família, o investimento no autocuidado para diminuir o estresse e manter um maior nível de qualidade de vida, a busca por informações e conhecimentos que auxiliem no cuidado. Entretanto, a urgência das circunstâncias e a cronicidade da doença podem fazer com que esse pensamento estratégico nunca seja colocado em prática. O mais comum é que um ou dois membros da família assumam desmedidamente todas as responsabilidades, tendo como resultado um processo cumulativo de desgaste e exaustão.

Quando, entretanto, as necessidades de cuidado físicos e emocionais extrapolam as capacidades  de um núcleo familiar, existe a real necessidade de avaliar a possibilidade de terceirizar os cuidados, por meio de instituições especializadas que podem ser um caminho que os familiares encontram para oferecer o suporte necessário ao familiar dependente.

Cuidar é um ato de amor, reconhecer os próprios limites também. E, com o passar do tempo, abrir mão de ser o cuidador pode ser a maior gentileza de alguém para consigo mesmo e para com o doente. Atos assim evitariam maus tratos dentro da casa e a total deterioração das relações.

No imaginário social, esta decisão é, muitas vezes, permeada de crenças e tabus que precisam ser discutidos mais abertamente, evitando reações preconceituosas ou sentimentos de culpa e remorso dos familiares que tomam essa decisão.

As clínicas destinadas aos cuidados, sendo os asilos ou clinicas de repouso, ainda são estigmatizadas por nossa cultura e, mesmo na mídia, como acontece com outras matérias, o enfoque é sempre para situações isoladas de maus tratos e negligência. Os aspectos saudáveis como a assistência 24 horas, uma equipe de enfermagem que trabalha em turnos e o tratamento humanizado nunca são veiculados. E nem é preciso dizer que o mesmo pensamento acontece com relação às instituições psiquiátricas.

Inúmeras pesquisas mostram que o estresse do familiar afeta negativamente a própria saúde e a qualidade dos cuidados oferecidos ao dependente. Cuidadores estressados e desgastados ou que não possuem os recursos necessários para atender as necessidades da tarefa podem agravar a situação do doente ao invés de contribuir para sua saúde.

Inúmeras pesquisas mostram que o estresse do familiar afeta negativamente a própria saúde e a qualidade dos cuidados oferecidos ao dependente. Cuidadores estressados e desgastados ou que não possuem os recursos necessários para atender as necessidades da tarefa podem agravar a situação do doente ao invés de contribuir para sua saúde.

 

Em alguns casos, a determinação da família pela institucionalização é taxada como negligência, falta de amor, zelo ou vontade dos familiares em cuidar do ente adoecido. Porém, precisamos pensar que, apesar de realmente haver descaso e abandono em certezas situações, muitas famílias, ao contrário, tomam essa decisão exatamente por desejarem o melhor ao familiar dependente. Ter a coragem e disposição para procurar ajuda externa pode ser também um ato de amor!

Clínicas de qualidade são abertas à visitação familiar em qualquer horário e algumas delas possuem até sistema de monitoramento por câmera que os familiares podem acessar de suas casas. A família deve ter claro, também, que colocar o familiar em uma instituição não precisa afastá-lo do contato frequente.

Quando inseridos em instituições sérias e eficientes, realmente comprometidas com o bem-estar e a qualidade do suporte oferecido, o ser cuidado pode receber um tratamento e acolhimento necessários para a manutenção da sua vida, com preservação do afeto e dos vínculos familiares além de ser inserido em atividades grupais e terem contato com outras pessoas que vivem situações semelhantes podendo ampliar seus vínculos sociais e de afeto.

E nesse processo de cuidado fora da família, podemos encontrar verdadeiros “anjos da guarda”. Pessoas que possuem o dom de cuidar com dedicação, carinho e técnica. Que oferecem ao paciente e a família o acalanto e o alívio num momento de profunda dor e crise.

Nos últimos meses de vida, quando os cuidados com o meu tio em casa tornaram-se muito complexos e as relações afetadas pelo desgaste e pela personalidade forte dele, a opção por internação em uma Clínica foi a melhor decisão que pudemos tomar. Nunca é fácil e há a necessidade de uma fase de transição e adaptação, mas a vinculação progressiva de meu tio com os profissionais e os cuidados que ele obteve na Clínica Recanto dos Anjos, de Atibaia, interior de São Paulo, foi impressionante. Além da amizade com os donos e funcionários, a quem, mesmo com a dificuldade causada pelo quadro de demência que se instalara, memorizava os nomes.

Meu tio, após nossas visitas de domingo e segunda, faleceu na terça feira nos braços da enfermeira Bete, uma das que ele mais estimava e que o tratava com imenso carinho.  Outro amigo que fez foi o Gê, a quem ele chamava o tempo todo e que o levava para fumar dois cigarros por dia (o vício de uma vida e que provocou seu câncer). Mesmo sendo ex fumante, o Gê, o acompanhava, ajudou-o a reduzir a quantidade de cigarros significativamente e conversava com ele por longos períodos. Em uma das últimas visitas que fizemos neste mês, Gê o carregou nos braços para levá-lo até o hospital, em um ato carinhoso que muitos filhos não são capazes de fazer por seus pais. E isso sem mencionar os demais nomes dos outros profissionais amigos que tão bem nos acolheram nesse período de nossa jornada.  Josie Conti

A esses profissionais cuidadores transmitimos nossa mais profunda admiração e respeito.

E aos familiares que precisam terceirizar os cuidados de um ente querido por amor e zelo, que se sintam acolhidos em suas decisões e amparados em suas angústias e sofrimento. Que não precisem sentir remorso ou culpa pela decisão tomada, pois ela nasceu do mais profundo sentimento de que era o melhor a se fazer.

E, para finalizar, um lindo texto que recebemos ontem a noite…

Uma carta ditada pela alma, por Isabel Sottomayor

Em dada altura da vida, raras vezes, o corpo começa a efetuar desconexões com a alma; quase imperceptíveis. Começa nas pequenas torturinhas de memorização dos ondes, dos quems e dos quandos.

Rigores pouco importantes.

Tão pouco que ninguém se importa. Ou repara ….muito. Apenas eu, no meu ego de super-eficiente, na sua intensificação, por um lado me irrito, mais irascível que estou, com a minha alma, sem saber que a culpa é do meu Corpo, por outro lado, me zango com os outros, com medo que encontrem defeitos na minha Alma, seguindo esse meu preconceito, já como defesa.

Sim, pois ao confundir já, então, a causa com a consequência e, essa, com a circunstãncia, produz-se a imagem de que tudo é apenas temporário.

Mas se permanecesse temporário, faria algo…

A permanência significa, no meu caso, um avanço de estado, ou seja, o meu gradual esquecimento das urgências anteriores, tal como os ondes…. Em simultãneo com o reconhecimento doloroso, pelos outros, dessas ocorrências, são o primeiro dado oficial que temos da separação do Corpo e da Alma. Por culpa do Corpo. Antes, parecia-me que algo de grave se passava de fora para dentro. Mas isso era no início.

Quando afinal era de dentro para fora.

E talvez não fosse tão grave, mas definitivamente não era desejado nem previsto.

A leitura médica fala numa escada descendente. Limite de anos.

Desconforto e sintomas habituais.

Isso é o que se passa com o Corpo e os seus órgãos.

Depois há a Alma!







Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Junguiana formada pela UFSCar. Especialista em Psicoterapia de Abordagem Junguiana associada à Técnicas de Trabalho Corporal pelo Sedes Sapientiae e em Gerontologia pelo HSPE. CRP: 06/77338