De olhos bem fechados

Com base em um manuscrito de um sonho, De Olhos bem fechados, Stanley Kubrick( 1999) aborda a questão do ciúme quando este se transforma em pesadelo para um homem leal. Ao mesmo tempo, traz à tona a questão do sexo imposto pela cultura e as diversas modalidades do mesmo até as orgias e transgressões. Até que ponto fantasiamos uma traição? A traição pode ser realizada, mas, muitas vezes, é fantasia ou até mesmo, em um sonho ela se faz presente. Por que sexo não se reprime. É instinto, é fantasia.

A questão do filme perpassa uma insuportável sensação de posse, da parte de Bill que sempre teve sua mulher como única, perfeita e linda. A relação lhes trouxe uma filha, eles têm status e poder-se-ia dizer que são um casal perfeito dentro da sociedade burguesa.

A história acontece em Nova York, no Natal. A fotografia é perfeita com as luzes natalinas sinalizando a grande festa da família.

Psicologicamente, à luz da psicologia analítica de C. G. Jung, sabe-se que todo homem tem em sua intimidade um contraponto sexual chamado Anima. Da mesma forma que as mulheres possuem o Animus, representante do seu lado masculino inconsciente.

Animus e Anima são estruturas arquetípicas, agindo como fôrmas primordiais, que norteiam nossas relações com o sexo oposto. Essas fôrmas arquetípicas vão sendo preenchidas por meio das nossas vivências e acabam sendo projetadas no mundo exterior, produzindo atrações ou repulsões a determinados tipos humanos. Daí que surgem as paixões ou os ódios incompreensíveis.

É significativo compreender que no homem a Anima é preponderantemente construída a partir da figura materna, enquanto o Animus da mulher surge das experiências masculinas de sua mãe. Com isso, a Anima fica muito mais coesa e o Animus mais polivalente e multifacetado.

Dessa diferença temos que o homem carrega dentro de si uma imagem de mulher mais idealizada e por essa razão tende a procurá-la mais insistentemente – o representante extremo e patológico dessa busca pela Anima é o personagem Dom Juan, o eterno conquistador. A mulher, por ter uma pluralidade de figuras masculinas em seu Animus, tende a ser mais adaptada e compreensiva nas relações.

Essas características fazem com que o homem tenha muita dificuldade em amar verdadeiramente mais do que uma mulher ao mesmo tempo, enquanto que as mulheres conseguem amar e serem fiéis a mais do que um homem simultaneamente, porque possuem a capacidade de amar fragmentos e aspectos de cada homem e não sua totalidade.

Por isso, os homens aprenderam a dissociar amor de sexo, usando e abusando dessa habilidade apesar de, em sua intimidade, acreditarem estar sendo fieis à mulher amada, aquela que se assemelha com a imagem da sua Anima. O que os deixa muito mais adaptados para o comportamento poligâmico.

As mulheres, por sua vez, apesar de conseguirem amar aspectos masculinos em vários homens, sexualmente, são mais fieis, por terem dificuldade de amarem aspectos iguais em homens diferentes, podendo ter atração sexual por um, atração intelectual por outro, e assim por diante.

De olhos bem fechados nos mostra esta questão psicológica dentro do casal. Quando Alice apenas conta um trecho de sua atração por outro homem, seu marido não sustenta mais a discussão e vai às ruas de Nova York em busca de aventuras amorosas.

Ele acaba chegando a um lugar poderoso, macabro e proibido em que os mascarados olham e transam com as mulheres que se oferecem. O cenário é realmente mitológico e aí temos Kubrick dando o seu melhor em matéria de estética e beleza. A questão econômica também é nítida, quando Bill quer comprar tudo e inclusive rasga uma nota no meio, mostrando que está pagando a metade de uma corrida ao taxista. Tamanho é seu desprezo ao que possui e é sua vida. Ele nega sua própria atitude e faz questão de provar sua identidade mostrando a carteira de médico em todos os lugares que passa para ter certeza de sua credibilidade. O status de médico. A prova irrefutável de que pode comprar fantasias às 2 horas da manhã sem ninguém refutar nem desconfiar de suas intenções sombrias.

A sequência mais discutida, mais controversa é a cena do ritual esplendoroso da orgia da qual Bill participa: o absoluto núcleo do tema. Ele é moralista e se sente culpado, como diz ao amigo no final, e chora ao contar para sua mulher o que fez aquela noite. Nesta cena o diretor denuncia os mitos sobre as orgias e suas consequências. É um terreno perigoso no qual Bill se envolve e é expulso. Tudo que se passa na mansão é enigmático, como se nós jamais possamos chegar a um êxtase total, como fuga ou defesa.

Voltamos, mais cedo ou mais tarde à realidade. Tememos tudo o que não entendemos, mas uma vez fascinados, nos deixamos sonhar com momentos encobertos pela própria consciência e com os olhos bem fechados.

Essa situação vem brutalizando os seres humanos deixando as mulheres com mais testosterona e, consequentemente, atuando de modo mais masculino e poligâmico. Por isso, atualmente, ambos os gêneros sexuais estão tendendo à poligamia. A meu ver essa situação é responsável pelo aumento de casos de depressão e uma infinidade de queixas e insatisfações relacionais e existenciais.

Então, no passado as mulheres tendiam mais para os relacionamentos monogâmicos, mas atualmente a poligamia e a traição são realidades presentes e iguais para ambos os sexos.

Kubrick finaliza sua excelente narrativa com a revelação do casal diante de si próprios, como se desmascarados daquela vida cotidiana e entediante, pudessem provar suas fantasias e ter a liberdade de vivê-las sem medo de trair ou machucar o outro, mas tendo plena consciência de que a traição sempre estará em nossas mentes. O amor existe até quando quisermos amar e ser amados, com todos os acidentes de percurso.







Fernanda Luiza Kruse Villas Bôas nasceu em Recife, Pernambuco, no Brasil. Aos cinco anos veio morar no Rio de Janeiro com sua família, partindo para Washington D.C com a família por quatro anos durante sua adolescência. Lá terminou o ensino médio e cursou um ano na Georgetown University. Fernanda tem uma rica vida acadêmica. Professora de Inglês, Português e Literaturas, pela UFRJ, Mestre em Literatura King´s College, University of London. É Mestre em Comunicação pela UFRJ e Psicóloga pela Faculdade de Psicologia na Universidade Santa Úrsula, com especialidade. Em Carl Gustav Jung em 1998. É escritora e psicóloga junguiana e com esta escolha tornou-se uma amante profunda da arte literária e da alma, psique humana. Fernanda Villas Bôas tem vários livros publicados, tais como: No Limiar da Liberdade; Luz Própria; Análise Poética do Discurso de Orfeu; Agora eu era o Herói – Estudo dos Arquétipos junguianos no discurso simbólico de Chico Buarque e A Fração Inatingivel; é um fantasma de sua própria pessoa, buscando sempre suprir o desejo de ser presente diante do sofrimento humano e às almas que a procuram. A literatura e a psicologia analítica, caminham juntas. Preenchendo os espaços abertos da ficção, Fernanda faz o caminho da mente universal e daí reconstrói o caminho de volta, servindo e desenvolvendo à sociedade o reflexo de suas próprias projeções.