Carta à introspectiva que me habita

Hoje eu queria falar com você. Sim, você que me olha por trás da porta e prefere a luz do abajur ao lustre da sala de jantar. Você, que coleciona leituras e grifa livros pra revisitá-los quando bem desejar. Você, que queria ser notada na adolescência mas sentia-se mais inadequada que capaz. Você, que é o oposto daquela que ousou escrever alguns textos num blog; aquela que hoje divulga mais da sua vida do que você seria capaz de aguentar. Você, que de noite sai de seu esconderijo e vem me (se) recriminar por andar tão íntima da vida.

Sabe, gosto do seu jeito. Entendo sua necessidade de reclusão e quietude. Seu anseio por fechar-se em seu mundo, onde arquiteta a vida e organiza os sonhos. Mas de vez em quando você se pune demais. Engasga na frente de um conhecido que vem lhe dizer que gostou da última postagem e tenta se desculpar por ser tão cara-de-pau, capaz de inventar enredos numa rede social.

Temos que nos respeitar mais. Sim, nós duas. Nossa convivência já teve períodos bons, como quando você me fechou por um tempo, estudando com afinco para o vestibular (quando enfim entramos na faculdade, aí sim você me deixou aflorar). Fui mais livre que as asas da borboleta e não houve uma única noite em que me condenou por ser tão feliz. Mas então veio a formatura, o fim daquele namoro sério, a vida se enchendo de cimento e cal. Endurecemos juntas, e _ perdão pelo trocadilho_ aprendemos o quanto doeram nossas juntas. Você veio à tona com uma ferocidade aguda, tentando encontrar um rumo para nossas vidas que agora tamborilavam fora do prumo.

Com o tempo a vida se reorganizou, e pude encher meu peito de festa novamente. Veio a fase de casar, ter filho, apaziguar o coração.

Mas a gente não controla tudo. Aliás, temos controle sobre muito pouco. E por mais que imaginemos que nossa vida anda nos trilhos, de vez em quando pequenos abalos nos permitem enxergar melhor o que vai dentro de nós e nem tivemos a ousadia e delicadeza de perceber.

Algumas curvas são necessárias e turbulências fazem parte de vôos rotineiros. Não devem ser encaradas como tormentas, apenas gatilhos para uma existência mais equilibrada.

É você, minha introspecção, que me dá chão. Que me permite olhar para os problemas e com calma acreditar que há uma solução. Que me resguarda dos riscos supérfluos e ensina que a vida é feita de ciclos necessários. Que me autoriza a estar quieta mesmo quando a existência grita pedindo alguma resposta. Que ampara minha individualidade no meio de tanta gente padronizada e clonada.

E descubro agora que preciso lhe respeitar mais. A aceitar esse lado que me habita com serenidade, sem negá-lo ou tentar transformá-lo em algo novo ou diferente. Foi assim desde o princípio, se lembra? Somos a menina que, na formatura da pré escola, segurou a letra “X” e ouviu da professora: ‘já que ela não fala, fica com a letra X, não há frases com esta letra…’ A professora não sabia, mas a menina tímida e introspectiva não era só isso; e, principalmente, não tinha somente sua quietude a oferecer.

Ainda assim, preciso que se perdoe por não ser tão expansivamente atraente. Por não adotar a extroversão como o método de conquista mais aceito, e portanto mais fácil. Por buscar sua autenticidade mesmo que isso custe alguns momentos de desconfortável silêncio. Somos duas, e minha pressa de ser feliz negocia com seu tempo de ser simples e aproveitar o momento.

Nos completamos enfim. E agora abro a porta e lhe convido a ficar. Diminuo a luz, e juntas brindamos à vida com aquele vinho que você tanto gosta. Já não cabem mais julgamentos ou regras para nossa convivência.

Vamos desarmar nossas defesas, insistir em nossa leveza, somar delicadezas. Descobriremos afinidades, desejos de simplicidade, desapego de superficialidades. Falaremos do tempo que restaura, das novas alegrias, daquilo que hoje faz nossa pele arrepiar e o coração acelerar. Não haverá mais espaço para os pequenos percalços, granizos diminutos de nossas tempestades passadas. Acima de tudo, seremos tolerantes ao silêncio que nos habita. O silêncio que fala de esperança e lucidez. O silêncio que acalma e conforta.

O silêncio que um dia você me segredou que também é parte do tecido de que somos feitos. O silêncio que só precisamos ser, permitir sentir… Bem-vinda!







Escritora mineira de hábitos simples, é colecionadora de diários, álbuns de fotografia e cartas escritas à mão. Tem memória seletiva, adora dedicatórias em livros, curte marchinhas de carnaval antigas e lamenta não ter tido chance de ir a um show de Renato Russo. Casada há dezessete anos e mãe de um menino que está crescendo rápido demais, Fabíola gosta de café sem açúcar, doce de leite com queijo e livros com frases que merecem ser sublinhadas. “Anos incríveis” está entre suas séries preferidas, e acredita que mais vale uma toalha de mesa repleta de manchas após uma noite feliz do que guardanapos imaculadamente alvejados guardados no fundo de uma gaveta.