Café com amor

No Centro de Saúde onde trabalho, as pessoas começaram a sentir diferença no gosto do café. Antes ele vinha rançoso, azedo, mal passado, mal digerido. Com as férias da funcionária responsável pelo café, ele passou a vir gostoso, no ponto certo entre forte e não tão forte, quentinho, saboroso.

Conversando na cozinha sobre o novo sabor do cafezinho de todas as tardes, alguém cogitou a hipótese: “o café dela é ruim porque faz com raiva”.

Embora haja controvérsias, há razão nisso. Porque não há café coado no mundo que carregue sabor se não houver amor.

As coisas aspiram uma existência afetuosa, e somos os responsáveis por deixar o mundo com mais amor.

É comum dizermos que algo “não desce”. Aquele café não desce, aquela pessoa não desce, aquela comida não desce, aquele trabalho não desce. Talvez o ingrediente sobressalente em tudo isso seja a raiva. Talvez falte amor. O amor que vem da capacidade de nos entregarmos e gostarmos de cada gesto que fazemos, cada realização de nosso pensamento e de nossas mãos.

Depois do episódio do café passei a rever certas ações do meu dia. Ao entrar no Centro de Saúde, entro com amor? Ou já entro cansada, mal humorada, desanimada? Ao abrir a porta do consultório e começar a atender o paciente, faço com amor? Ou tenho pressa, desgosto, falta de vontade? Ao dirigir de volta para casa, retorno com amor? Ou volto cansada, apressada, sem paciência com o motorista à minha frente? Buscando meu filho na escola, busco com amor? Ou busco como um ato mecânico, rotineiro, banal? Entrando em casa, entro com amor? Ou chego reclamando do meu dia, irritadiça com as lições de casa do meu menino, cansada com tantos afazeres numa única semana? Janto prestando atenção aos sabores do meu prato e ao aroma do meu vinho ou cumpro apenas uma necessidade de existir, passando apressada pelos ingredientes de minha refeição enquanto confiro os videos do whatsapp? Olho nos olhos do meu marido enquanto ele fala ou apenas murmuro reclamações sobre minha segunda-feira infernal?

Viver uma vida que “não desce” é distanciar-se do amor que envolve todas as coisas. É deixar o desânimo e a raiva serem os fios condutores de nossas existências.

Confesso que por diversas vezes me vi seguindo o roteiro tortuoso de minhas realizações. Trabalhando sem amor e seguindo meu caminho com a força da rotina massacrante que permiti me conduzir. Ligando o piloto automático e realizando tudo sem a devida reverência.

Mas o caminho para a mudança vem da consciência. E perceber nossas ações sem o tempero do amor é o primeiro passo para a transformação, quem sabe convertendo a desarmonia em alegria. Tenho parado para pensar desde então. Sabendo que o gosto do café se altera com a raiva, e que posso mudar meu entorno com mais tolerância e amor, só posso desejar mais doçura em minha vida _ a partir do meu próprio modelo, a partir de minhas próprias atitudes e pensamentos.

O mundo da gente começa a mudar pela gente. Não adiante desejar um café gostoso se em nossa própria vida falta encontrar o ponto certo. Não adianta almejar o feijão de caldo consistente e tempero na medida se no decorrer dos dias não nos alegramos com o que há. De nada adianta o querer se não amamos o que temos.

Nem sempre trabalhamos naquilo que amamos, mas buscar satisfação nos pequenos gestos, ainda que seja um exercício difícil, é a receita para sermos mais gentis com nossa própria pele. Maltratamos a nós mesmos quando não ofertamos nosso melhor. E o saldo é sempre negativo: baixa imunidade, tristeza e raiva.

Que nossa receita seja simples: Coloque amor em tudo. As coisas tendem a retornar do mesmo jeito que partiram, e aí quem sabe a gente aprenda a ser mais feliz também, descobrindo que aquele cafezinho bem passado foi o gesto de um amor que floresceu primeiro em nós, fazendo bem ao nosso pensamento e vontade, e depois se espalhou por aí, feito cheirinho de café _ com amor_ coado na hora…







Escritora mineira de hábitos simples, é colecionadora de diários, álbuns de fotografia e cartas escritas à mão. Tem memória seletiva, adora dedicatórias em livros, curte marchinhas de carnaval antigas e lamenta não ter tido chance de ir a um show de Renato Russo. Casada há dezessete anos e mãe de um menino que está crescendo rápido demais, Fabíola gosta de café sem açúcar, doce de leite com queijo e livros com frases que merecem ser sublinhadas. “Anos incríveis” está entre suas séries preferidas, e acredita que mais vale uma toalha de mesa repleta de manchas após uma noite feliz do que guardanapos imaculadamente alvejados guardados no fundo de uma gaveta.