Às vezes é preciso escorregar do telhado

Quando eu era adolescente vivia em minha cidade um senhor austríaco e sua esposa. Ela era uma mulher muito simpática, já ele não. Era monossilábico e parecia alheio a tudo que se passava ao seu redor. Durante as festas que dava em sua casa ele comumente não se mostrava interessado em nada e nem em ninguém.

Até que, em um almoço de fim de semana, ele nos chegou à mesa simpático e conversador. Falou pelos cotovelos, sempre emendando uma frase na outra, uma história na outra, um causo no outro. Nesse dia a esposa veio até nós e se desculpou. Disse que o marido tinha escorregado do telhado e que desde o episódio ele se comportava de tal forma, sendo extremamente expansivo e simpático.

Lembro de na época ter ficado boquiaberta com o que uma escorregada do telhado podia fazer com uma pessoa. E hoje entendo que essa escorregada pode ser uma metáfora para todos nós. Ela pode acontecer mais cedo ou mais tarde em nossas vidas sem aviso prévio. De repente, algo pode nos fazer ver tudo de um jeito diferente. Pode nos trazer contentamento ou consternação. Uma viagem, uma nova cidade, um novo país, um novo relacionamento, um novo trabalho, novas amizades, acontecimentos específicos, novas crenças, tudo isso pode nos mudar.

Contudo, como bons humanos que somos, costumamos evitar mudanças, mas incrivelmente são essas mudanças que nos dão a chance que precisamos para enxergarmos a vida com outros olhos. Para nos posicionarmos de forma diversa diante dos acontecimentos. A mudança pode ser enriquecedora.

Mudar não é fácil e nem sempre o fazemos porque queremos, muitas vezes a vida se encarrega de dar uma sacudida na gente. A vida se encarrega de propiciar nossa escorregada. E como toda queda ou tombo, provavelmente essa mudança de paradigma virá seguida de alguma dor.

Trazer o novo para junto de nós e deixar para trás velhos pensamentos, velhos hábitos e pessoas nocivas não é fácil, mas necessário. Liberar dos ombros pesos supérfluos é um alívio. Enterrar gente viva que já morreu em nós, dói sim, mas é preciso. Abrir as janelas de nossa morada para que um novo sol entre, para arejar os cômodos, certamente melhorará a saúde da nossa alma.

Enxergar a vida sem filtros, de forma clara. Olhando as pessoas nos olhos. Dizendo o que nos parece justo e sincero é um ótimo jeito de começarmos a vida depois de um tombo ou melhor depois que somos brindados com a oportunidade de provarmos o diferente. Contudo, é preciso que nos lembremos que em grande parte das vezes apenas nós teremos passado por esse processo, muitos que estão em nosso cotidiano continuarão exatamente iguais, pelo menos por um tempo.

Dessa forma é possível que o mundo se agarre, em uma segunda-feira nebulosa, a um mau humor costumeiro, mesmo que em nós o sol esteja raiando com força. É provável que tudo esteja exatamente igual enquanto andamos por aí iluminando tudo com o nosso sorriso mais sincero.

O segredo da mudança está em vivermos o bem que os nossos novos passos nos propiciaram e não em desmerecermos as escolhas alheias. Está em respeitarmos o tempo de cada um. Em respeitarmos a maturidade que diz se alguém está pronto ou não para cair do telhado de forma proveitosa.

Se a vida nos chacoalhou quer dizer que estamos no ponto certo para tocarmos o solo sendo alimento e semente para tudo que nos cerca. Trazendo conforto, força e contentamento. Nutrindo o mundo de beleza e de vida não robotizada.

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Vanelli Doratioto é especialista em Neurociências e Comportamento. Escritora paulista, amante de museus, livros e pinturas que se deixa encantar facilmente pelo que há de mais genuíno nas pessoas. Ela acredita que palavras são mágicas, que através delas pode trazer pessoas, conceitos e lugares para bem pertinho do coração.