A Outra História Americana: quando o ódio nos torna cegos

Saramago afirmou que o homem está cego da razão, que não consegue enxergar nada ao seu redor e só vê alguma coisa ao olhar para si mesmo. A individualidade e a mesquinharia do homem são tamanhas, que o português chega a dizer no seu “Ensaio sobre a Cegueira” que: “Ainda está por nascer o primeiro ser humano desprovido daquela segunda pele a que chamamos de egoísmo, bem mais dura que a outra, que por qualquer coisa sangra”.

Esse egoísmo é demonstrado em atos como o racismo, a homofobia e o xenofobismo. Enganam-se aqueles que acham que as coisas hoje estão muito diferentes. Na verdade, há um véu de hipocrisia que passa a falsa sensação de que esses comportamentos inescrupulosos não são praticados diariamente. Mas basta a situação ficar mais complicada e emergir uma crise, para que o preconceito velado venha à tona.

O atual momento político brasileiro fala por si só, em que o ódio deu lugar a qualquer pensamento racional e empático, de modo que, salvo raras exceções, são disparadas ofensas em direção aos indivíduos com posições ideológicas contrárias, além da exaltação de indivíduos altamente racistas e sexistas, que desconhecem o significado das palavras igualdade e inclusão.

Essas questões aparecem de forma brilhante no filme “A Outra História Americana” (American History X), do diretor Tony Kaye. A trama gira em torno da vida dos irmãos Danny (Edward Furlong) e Derek (Edward Norton) que, envoltos pelos pensamentos preconceituosos do pai, passam a se envolver com uma gangue de skinheads após a morte deste. Através de flashbacks não lineares, a história vai sendo contada, demonstrando, por meio desse anacronismo, a relação de causa e consequência das ações.

Em um desses flashbacks, vemos o garoto Derek, ainda desprovido de preconceitos, falando acerca de seu novo professor, de como este é fantástico e das leituras que estão fazendo. O pai, aparentemente um homem de bem e honesto, um bombeiro que trabalha para a comunidade, indaga o filho sobre o referido professor e constata que este é negro e que está incentivando a leitura de livros que abordam as questões étnicas da sociedade americana. Indignado, desconstrói a imagem que seu filho possui em relação ao professor e lhe ensina uma “grande lição”: a de que a culpa por todos os problemas se devem aos negros e imigrantes que vêm para a “América” roubar seus empregos e destruir suas vidas, como verdadeiras pragas. Derek observa atentamente e internaliza cada palavra. Estava plantada a semente do ódio.

Assim como Derek, muitas vezes damos vazão a discursos cheios de ódio e permitimos nos infectar por um mal que nos corrompe. Passamos, então, a analisar a realidade de modo superficial e com o recorte que nos é conveniente. Daí a se tornar um homicida como o personagem de Norton é um passo tão curto, que sequer imaginamos. No entanto, não precisamos ir tão longe, quer dizer, menos longe, já que a tortura psicológica e a exclusão causadas pelo ódio são tão desprezíveis e duras quanto um ato de violência física cometido.

Como disse, em momentos de crise, esse ódio vem à tona e é assim que acontece no filme e, curiosamente, na vida. No mesmo flashback em que se planta o ódio em Derek e, consequentemente, em seu irmão, Danny, o pai afirma que, nos Estados Unidos, os melhores devem vencer e que ações afirmativas são uma besteira para desqualificar quem de fato merece ser vencedor. Dessa maneira, Derek e seu irmão são impulsionados a convergirem para a ideia de que qualquer problema que acontece é culpa exclusivamente dos negros e estrangeiros que saqueiam a sua nação.

Esse mesmo pensamento é transmitido por Cameron (Stacy Keach), líder da gangue dos skinheads, levando-os a invadir e destruir lojas pertencentes a negros e estrangeiros, espancá-los, saqueá-los e até mesmo matá-los. Essas ações acontecem em função de um ódio que os torna cegos e lhes permite enxergar apenas a verdade racista que carregam no peito, literalmente.

No Brasil, também há manifestações como essas, seja com negros, com pessoas de outras regiões ou pobres – pior é quando há uma combinação. Também escutamos discursos inflados contra ações afirmativas, muito embora a própria Carta Magna seja trabalhada segundo a perspectiva da igualdade material, de modo que os desiguais devem ser tratados como desiguais, a fim de equilibrar as discrepâncias sociais. Além disso, temos os nossos líderes, endeusados com seus discursos marcadamente odiosos. Ou seja, reiterando o que já foi dito, não estamos muito distantes da realidade do filme e por isso ele é imprescindível.

Derek e Danny, bem como os outros jovens da gangue, não são apenas racistas e cheios de ódio porque alguém mais velho lhes disse que eles são superiores, mas, sobretudo, porque permitiram se contaminar e, em meio a momentos difíceis, preferiram sucumbir ao caminho mais fácil, desconsiderando outras possibilidades e abordagens. Não é porque seu pai morreu em um bairro negro (apartheid?) que Derek tornou-se uma máquina racista de destruição e sim porque não se permitiu observar o que acontecia de fato ao seu redor e ser tocado por palavras de respeito e tolerância.

É somente na prisão que, paradoxalmente, Derek se liberta, mais que isso, pelas mãos de homens negros, os quais até ali odiava. Ao permitir ser tocado por outra perspectiva, por outro olhar, Derek percebeu que aquilo que tinha feito da sua vida não fazia sentido algum e somente trouxera destruição para ele e para aqueles que estavam ao seu redor, como a péssima influência que foi para o irmão. Enquanto se fazia as perguntas erradas, Derek jamais conseguia as respostas certas. Foi somente quando pensou e fez a pergunta certa, que obteve a resposta que precisava.

“Bob Sweeney – Houve um tempo em que eu culpava a tudo e a todos por toda dor, sofrimento e as coisas desprezíveis que aconteciam comigo e que eu via acontecer com o meu povo. Eu culpava todo mundo. Culpava os brancos, culpava a sociedade, culpava Deus. E eu não tinha resposta porque fazia as perguntas erradas. Você deve fazer a pergunta certa.

Derek – E qual é?

Bob Sweeney – Alguma coisa do que fez tornou sua vida melhor?”

Infelizmente, para Derek, tudo que fizera e transmitira gerou frutos e as consequências foram inevitáveis, o que nos leva à cena final. Mas, para nós, talvez esse ponto ainda não tenha chegado e, assim, ainda é tempo para fazermos a pergunta certa, destruir toda semente de ódio e reavaliar o que vivemos, como fez Derek e também Danny, através da história do seu irmão, afinal, “Nós não somos inimigos, mas amigos” e, como disse Danny:

“O ódio é um ônus, a vida é muito curta para se estar sempre com raiva. Não vale a pena.”







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