A morte de Ivan Ilitch e a queda da máscara existencial

Já dizia o poeta que a morte é o único mal que não pode ser remediado. Outros podem dizer que a morte é a última fronteira. E alguns dirão que a morte é apenas a libertação da alma. Fato é que ela, de um jeito ou de outro, amedronta. Para Ivan Ilitch, não foi diferente.

A novela de Tolstói é uma obra que fascina, por tratar de um dos temas mais importantes da história do pensamento humano, a saber, a morte. A vida de Ivan é definida, logo no início da obra, como uma das mais simples, mais comuns e, portanto, mais terríveis.

Essa definição é primordial, pois o medo da morte nos coloca num ponto de introspecção, em que refletimos sobre nossa vida e se esta valeu a pena. Sendo assim, inicialmente já se percebe que a vida do protagonista não foi bem vivida como o próprio acreditava.
Ivan Ilitch era um sujeito pragmático e racional. Desse modo, levava sua vida segundo um princípio básico: viver de maneira leve, agradável e decente. Qualquer coisa que atrapalhasse essa ordem lógica era um entrave ao que Ivan acreditava ser felicidade. Como racionalista, as suas alegrias vinham de pontos bem específicos:

“A alegria que Ivan Ilitch encontrava no trabalho era a alegria da ambição; as alegrias da vida social eram as da vaidade; mas as verdadeiras alegrias era proporcionadas pelo uíste.”

Fica claro que as alegrias começam e terminam em Ivan Ilitch, o que demonstra o seu egoísmo, mas, ao ver do protagonista, condizem com uma vida decente. Em verdade, não condizem, contudo, ao longo da vida, cada indivíduo cria uma definição de si mesmo, a qual se busca manter como uma espécie de auto-crença. Montaigne nos diz que: “A vida vivida ao longo da vida, é um teatro de simulações, onde somos, em grande medida, escravizados por aquilo que acreditamos que somos!”.

Essa máscara existencial, a qual Ivan Ilitch usava, só começa a ser percebida a partir da sua doença, pois é somente no instante da morte que podemos julgar toda uma vida. Assim, é a doença que permite, ao protagonista, olhar para dentro de si criticamente.
O medo da morte o faz perceber a finitude da vida, logo ele, que entendia fim com apenas um sentido, qual seja, finalidade. De modo que procurou viver de forma racional em tudo o que fazia. Nietzsche já advertia que é muito ingênuo acreditar que as coisas só podem resolver-se pela lógica. E, assim, a morte (tão ilógica) é o estopim da  mudança na cosmovisão de Ivan Ilitch.

Essa mudança acontece, pois o medo da morte o fez perceber o teatro que o cercava, que, por trás do requinte, escondiam-se mentiras, as quais eram mantidas pela “decência” que ele defendeu por toda uma vida. E eram essas mentiras que alimentavam a dor moral de Ilitch.

“O que mais fazia Ilitch sofrer era a mentira, aquela mentira aceita por todos.”

Ilitch se viu impotente em relação à morte, uma vez que a morte é toda relação que apequena, entristece, tira a potência (Espinosa). Assim sendo, à medida que as relações entristecem Ivan, este vai morrendo. Em outras palavras, o medo é uma queda de potência determinada pela consciência, isto é, se Ivan tem medo da morte, é porque ele não viveu como deveria e, portanto, entristece-se ao saber que não viveu da forma decente como sempre acreditara.

“E ele começou a repassar na imaginação os melhores momentos da sua vida. Mas – coisa estranha! – tais momentos não lhe pareciam agora tão agradáveis como cuidava que fossem, salvo as primeiras recordações da infância.”

A doença que acabara com a decência da vida de Ivan foi a mesma que o fez perceber que a sua vida foi tão fútil e mesquinha quanto a dos outros. Ora, a doença mostrou-lhe que, até ali, a sua vida não fora decente, que ele era incapaz de colocar-se no lugar dos outros, de viver para alguém além de si mesmo, de criar laços. E, assim, via a falsidade nos olhos dos outros, enxergava, ao mesmo tempo, a própria falsidade da sua vida.

Ivan Ilitch percebe que, à medida que sua vida escoa, os momentos que viveu e, sobretudo, não viveu são irrecuperáveis. Percebe que a doença encontrou terreno farto para se reproduzir, pois tudo o que vivera não passava de mentiras, mentiras que agora o entristeciam e irrigavam o terreno da dor moral que sentia, fazendo esta ser muito maior do que a dor física que sentia.

“Quando entrou a repassar o período que gerava o atual Ivan Ilitch, tudo o que lhe parecera ser alegria se desmoronava ante seus olhos, reduzindo-se a algo desprezível e vil.”

A morte foi, para Ivan, uma libertação do teatro que o cercava, mas, ainda assim, o deixava impotente. A morte nos amedronta, faz querer fugir; fugir da verdade da morte, que mostra a nossa finitude e todas as redes de mentiras que tecem a vida social. Mas, acima de tudo, entristece ao próprio ser, que, ao deparar-se com a morte, percebe o quão vazia foi sua vida.

Assim, a boa vida não é aquela que se preocupa tão somente com a finalidade das coisas, mas com o término, pois é por ter um fim que a vida possui valor e devemos atribuir-lhe valor. Não como Ivan e sua monótona vida burocrática, mas com aquilo que nos permite olhar nos olhos do outro e enxergar que a vida, de fato, foi decente, que o amor se fez presente e que, quando se for, seja importante; não para a alta sociedade, mas para quem possa portá-lo dentro de si, como um pedacinho seu que continua vivo.







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