A mão de Glória, por Lúcia Costa

Por Lúcia Costa

A cidade barulhenta expulsou aquelas duas famílias amigas. O vozerio exagerado dos homens e as buzinas de automóveis atormentavam – lhes.  Resolveram criar os filhos onde se escuta a algazarra dos pássaros e o assovio do vento. Mudaram-se durante o inverno para uma cidade de dez mil habitantes.

Os filhos dos casais somavam três: Beatriz , seis anos, e Antônio eram irmãos. Ele, apenas dois anos mais velho. Glória tinha um ano a mais que a amiga e era filha única. Encontrava nos companheiros, e agora vizinhos,  cumplicidade. Irmãos em casas conjugadas.

A casa de Glória tinha vários cômodos. Todos bem iluminados pelo sol que penetrava pelas grandes janelas de madeira. Os móveis eram poucos e necessários. Causavam imensidão ao interior da casa. O vento era convidado a percorrer os espaços. Era uma ordem natural.

Naquele dia, tudo acordou lavado: as plantas molhadas, a terra ensopada, o quintal era um lago raso. Os pássaros cantavam na copa, a empregada cantarolava na copa, as crianças barulhavam.

Os meninos brincavam, esticando-se no sol ainda morno das primeiras horas do dia, daquela manhã de sábado. Uma grande laranjeira cobria todos, mas os deixavam expostas às frestas de luz que se moviam lentamente, obedecendo ao passear do sol no céu, que mandava embora as últimas nuvens cansadas do trabalho na noite anterior. Chover é trabalhoso às operárias brancas. Chover é trabalho aos operários da terra. A chuva banha seres e coisas. Há sujeira sem a chuva; há sujeira com a chuva.

Glória e os amigos tinham pés e mãos enlameados. Arrumavam uma casinha de brinquedo. Faziam das pedras, banquinhos; das folhas, camas; das mãos, arquitetos. Beatriz e Antônio aproximavam-se naquela causa comum: a casinha primitiva. Glória afastou-se dos amigos e apanhou uma laranja caída durante a chuva na noite anterior. A fruta, madura demais, não resistiu ao vento que a balançou violentamente para todos os lados.

_ Glória, vem pra cá, grita Beatriz, vem ajudar a gente,

Glória, com a laranja nas mãos, dirige-se aos colegas.

_ O que é isso, Glória? Pergunta Antônio, curioso pelo segredo na mão de Glória.

_  Tô brincando de mundo, Antônio. Acabei de achar um mundo maduro caído no chão. Tá aqui, amarelinho, na palma da minha mão.

_ Traz pra cá, Glória! Beatriz fica animada com o novo brinquedo. Quer tê-lo dentro ou fora da casinha. Quer tê-lo.

Glória fez um pequeno buraco no chão e colocou a fruta para descansar. Mundo em um buraco úmido. A menina observa o brinquedo, acarinha-o o polo norte, tenta fazê-lo dormir, em vão. Recolhe-o e o coloca sobre o peito. Deita-se no chão molhado com o mundo sobre o corpo.

Sentindo a falta do brinquedo, Beatriz reclama:

_ Antônio, cadê o mundo que estava aqui?

_ O Mundo, responde Antônio, está na mão de Glória.

_ Glória!

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É professora de Língua Portuguesa, mora em Patos, PB e escreve poemas, contos, crônicas…